Viva o contato, viva a vaia
Por Ricardo Basbaum
A forte reação negativa à 28ª Bienal indica a vitalidade da mostra para provocar mudanças
Certamente que as duas últimas Bienais (esta e a anterior) iniciam uma curva ascendente para o evento –e temos que colaborar para que continue assim: em 2002 (um pouco menos) e 2004 (um pouco mais) houve um viés burocrático-autoritário que não deixará saudades –eventos marcados por uma publicidade maciça e inadequada, querendo quebrar recordes de visitantes e serviços, mas construindo um espaço repetitivo e anódino.
Sim, claro, em 2002 eu estava lá, como artista, no terceiro andar do Pavilhão, e fiquei grato em participar1 e experimentar as estruturas e limites do evento2. Do mesmo modo, é preciso reconhecer a presença, em ambas as edições, de artistas brilhantes, interessantes, provocadores, memoráveis (Artur Barrio, Milton Marques, Jorge Pardo, Líva Flores, Paulo Bruscky, Carlos Fajardo etc.).
Ou seja, em um evento deste porte (uma bienal internacional), para onde convergem forças provenientes de matrizes tão diversas e interesses de grande e médio porte, é preciso reconhecer que se torna mais extremo o conflito entre duas dinâmicas que possuem independência e autonomia (ou seja, procedimentos e métodos próprios): a presença, impacto e inteligência das obras propostas pelos artistas convidados; a dinâmica dos projetos e gestos curatoriais, que pensam o evento como um todo e lidam diretamente com os trâmites institucionais.
De fato, em exposições com a escala de uma bienal (não somente física, mas sobretudo em sua importância simbólica), somente o núcleo curatorial pode zelar pelo evento em sua totalidade, cabendo aos artistas realizar intervenções e lutar pelo seu funcionamento pleno e potente, freqüentemente conquistado em difíceis e seguidas rodadas de negociações.
Proponho discutir aqui alguns aspectos da especificidade das práticas artísticas e curatoriais e suas convergências e divergências na construção do evento de arte contemporânea –este parece ser um tópico crucial para se perceber a 28ª Bienal de São Paulo, assim como todas as exposições que pretendem ser mais do que um simples conjunto de obras reunidas.
A questão não é simples: ao entrar em uma Bienal ou documenta, por exemplo, esperamos estabelecer um contato direto com as obras ali apresentadas; somos entretanto conduzidos até elas através de espaços cuidadosamente construídos, a funcionar como mediadores para este acesso –para chegar a este ou aquele trabalho, deste ou daquele artista, temos que nos relacionar aqui e ali com outras obras, conjuntos de sinalizações e ambientações luminosas e cromáticas: quando acreditamos estar diante da obra, fomos de fato conduzidos por aqueles que se esforçaram em conceber a totalidade do evento e pensaram em como nos conduzir até ali: como perceber o trabalho, do qual queremos nos aproximar, em alguma autonomia e em seus traços próprios?
A superposição de questões artísticas e curatoriais é mais um índice da complexidade da condição atual da arte contemporânea; aqueles que decifram o trânsito destas linhas percebem os traços deste intricado jogo crítico-institucional e podem se arriscar em um deslocamento mais livre através dos museus e pavilhões. Seria inclusive possível afirmar que as exposições que exibem com transparência as linhas de construção do evento –divergência, conflito e negociação entre as intervenções artísticas e métodos curatoriais– estariam mais próximas de desempenhar um papel crítico e transformador; enquanto que as situações em que este "conflito de interesses" é dissimulado, se aproximariam apenas de um jogo obscuro de retórica e manipulação de poder.
Mas e o público? Este, em geral não tem acesso aos bastidores da construção do evento: ao entrar em contato com as obras, não lhe são oferecidas pistas dos jogos de linhas e forças, cuidadosamente costurados nos bastidores. Daí que o que toma como "obra" é também a construção de sua possibilidade de acesso àquele lugar, ou seja, um agregado composto do trabalho do artista e mediação curatorial.
A experiência de fruição ali possível seria aquela já previamente direcionada, própria da construção de uma experiência, com todos os recursos de uma engenharia do sensível: claro que pode haver aí um ganho, a riqueza de um contato intenso. Mas sobretudo se for oferecido ao visitante o acesso às marcas desta construção, as linhas do que é curadoria e do que são as obras –o vivo contato com a transparência da construção do evento.
Este é o ponto que me parece mais forte e significativo nesta 28ª edição da Bienal de São Paulo (e que esteve deliberadamente ausente em 2002 e 2004) –talvez a mais francamente curatorial, de modo esclarecido: o oferecimento público da transparência dos gestos de construção do evento.
Desde os primeiros anúncios do projeto desta Bienal, seu curador, Ivo Mesquita, procurou mobilizar a importância de se desnudar o evento, revelando sua condição de crise; e, ao mesmo tempo, apresentar os gestos de uma proposta de intervenção direta no processo habitual de sua construção, já que “não (seria) mais viável montar uma grande exposição nos moldes habituais” (comunicado feito à imprensa em novembro de 2007, há menos de um ano da inauguração do evento).
Tal estratégia não teria sido simplesmente motivada, como se sabe, por qualquer deliberada posição conceitual em relação à concepção do gesto curatorial, mas pela decisão estratégica de produzir uma significativa mudança de rumos do evento Bienal, através da exposição de suas entranhas e impasses –e, se possível, produzir um desvio em seu modelo de gestão, diagnosticado publicamente como anacrônico e falido.
A corajosa proposição de Mesquita imediatamente obrigou que todos os demais atores do circuito de arte brasileiro (e internacional, enfim) –ou seja, curadores, críticos, galeristas, colecionadores, artistas etc.– se posicionassem e incorporassem as perspectivas propostas pelo curador, seja em reforço a ela ou em franco desconforto frente à instabilidade da proposta: como e para que, afinal, construir um momento de "reflexão" e "pausa", se as coisas seguem em uma normalidade ascendente e a arte brasileira avança pelo mundo?
Sem dúvida que a Bienal de São Paulo é nossa grande vitrine; além do mais, “São Paulo não pode parar”. Sempre me pareceu claro, entretanto, que a inteligência estratégica da proposta apresentada indicava talvez a única possibilidade de que o evento pudesse pensar a si mesmo: a história recente indica que a Bienal de São Paulo não tem sido capaz elaborar um plano de reflexão, um projeto de trabalho, um novo modelo de gestão.
Seu orgão gerenciador –a Fundação Bienal e seu Conselho– parece não se interessar de modo responsável; manter reservas em relação à arte contemporânea; habitar um outro registro de conversas e debates; perder-se em anacrônicas disputas de poder; ou seja, só seria possível pensar o evento através do evento mesmo, planejar uma edição da Bienal que aponte para sua reavaliação, indagando acerca de seus limites e de seu papel e, mais, expondo de modo direto sua inconsistência gerencial e revelando a necessidade de se produzir outro modelo de gestão.
Curiosamente, algumas linhas escritas e publicadas aproximam os atuais curadores da 28ª Bienal daqueles da última documenta. A expressão “a grande exposição não tem forma” abre o texto assinado por Ruth Noack e Roger M. Buergel. Segundo eles, o desafio particular daquela exposição residiria em sua inerente condição informe (“formless”), sendo importante a ênfase em como o público em geral não estaria “bem equipado para lidar com esta radical ausência de forma”. Assim, ali, naquele evento, a “experiência estética em sentido verdadeiro” estaria ligada ao fato de que “a exposição se torna, de direito, um meio e pode assim aspirar a envolver a audiência em seus movimentos composicionais”3.
Por aqui, um ano depois, Ivo Mesquita e Ana Paula Cohen iniciam deste modo sua introdução ao Guia: “A 28ª Bienal de São Paulo propõe um formato diferente das bienais anteriores”; para, mais à frente, indicar “a construção de um espaço de exposição mais orgânico, diverso do cubo branco tradicional, (que) demanda uma posição ativa do espectador, possibilitando leituras e ressignificações a cada olhar, em um ambiente introspectivo”4.
Tanto em um como em outro caso, os curadores expressam preocupação com o evento enquanto "forma sensível", indicando que tal procedimento já está incorporado em nosso jogo perceptivo: por um lado, o evento é assumido como uma grande máquina de processamento sensível, aparelho de produção de enunciados e visibilidades; por outro, esta grande máquina dissolve os limites entre o evento e as obras, e a exposição transforma-se em uma grande instalação –ali o público é mobilizado e provocado, não importando, a priori, se o contato se dá com uma obra específica ou com o evento em si, uma vez que desde sua primeira aproximação o visitante já é conduzido através de uma sofisticada engenharia de produção e "design" de experiências5.
Parece-me que aí reside uma questão-chave, indicadora de interessante mudança perceptiva, provocada sobretudo pela arte conceitual e as experiências ambientais dos anos 1960/70: não percebemos mais apenas o objeto, mas este (dissolvido, em maior ou menor grau) em sua condição contextual. Para passar de um ao outro –nas idas e vindas do encontro–, precisamos de ferramentas, conceitos, determinados "perceptos": se quisermos reivindicar alguma autonomia possível para a obra de arte, precisaremos trabalhar, construir, nos esforçar –ou seja, trazer à superfície as linhas entre as coisas e eventos, membranas, superfícies de contato.
O problema principal, aí, seria: onde e como ficam os trabalhos dos artistas, quando a construção do evento assume condição de protagonista? Há o risco de uma perigosa inversão, já em curso: têm-se a impressão, muitas vezes, de uma nítida instrumentalização das obras em relação ao evento. Será preciso agora, todo o tempo, exercitar a construção das linhas entre obra e evento, curador e artista, para se perceber onde se localizam cada uma das ações: onde uma e outra escapam entre si, onde se juntam; em que momento as proposições se reforçam, e quando se afastam em dinâmicas separadas, cada qual em ritmo próprio. Não é tarefa simples ou fácil.
De modo geral, o visitante desavisado não tem acesso a este aspecto da exposição de arte contemporânea e acredita estar se relacionando apenas com as proposições dos artistas; de fato, a “exposição como um meio” quer se fazer presente enquanto ambiência a partir da qual são acessados os trabalhos (mesmo que talvez seja mais adequado se pensar em termos de um “pós-meio”6, que pensa a si próprio através do recurso à externalidade).
Considero um dos méritos da 28ª Bienal de São Paulo ter se assumido, plenamente, a partir desse conjunto de parâmetros: desde seu primeiro anúncio público já se podia esperar um evento de construção curatorial forte, arrojada; ou seja, há transparência na construção curatorial; esta não procura disfarçar-se sob qualquer norma de conduta ou fazer-se invisível enquanto princípio organizador oculto.
Entretanto, parece que –dentro da condição de trabalho apontada acima– apresentam-se novas dificuldades: é preciso encontrar o balanço correto entre as obras apresentadas e o gesto curatorial protagonista; uma exposição não se constitui apenas a partir de uma iniciativa organizadora; deve, isto sim, garantir a presença forte das obras, sem as quais o projeto proposto afinal não se define e concretiza. Penso que é nesse encontro que a atual Bienal apresenta algumas fragilidades: sobretudo no terceiro andar do Pavilhão do Ibirapuera, o difícil equilíbrio entre a responsabilidade curatorial pela construção do evento e a ação dos artistas na constituição de suas poéticas, se desloca em direção dos primeiros.
A imponente intervenção de Dora Longo Bahia (“Escalpo 5063”, 2008), em conjunto com a atuação de Gabriel Sierra no desenvolvimento de estruturas de madeira junto ao trabalho de cada artista, acabam por unificar em demasia o que seria um conjunto de trabalhos que apontariam em direções diversas –por exemplo, João Modé e Erick Beltrán, Iran do Espírito Santo e Ângela Ferreira: poéticas que tocam em frentes de sentido bastante distantes umas das outras, mas cujas diferenças são neutralizadas pela excessiva presença de um dispositivo curatorial homogeneizante.
Em tal contexto, “Escalpo 5063” fica no limiar de desempenhar um papel autoritário no espaço expositivo, ao impor-se sob cada peça, montagem e instalação dos diferentes artistas. Frente ao visitante, a obra se oferece a uma ação interessante, incorporando sua movimentação incessante e submetendo-se a um desgaste contínuo que acaba por revelar novas camadas de pintura; mas, em relação ao conjunto expositivo, “Escalpo 5063” é invasivo.
Se o desejo curatorial (ou da artista?) era ter uma peça onipresente, com função de integrar os demais trabalhos de modo “orgânico”, não seria o caso de se pensar em desenho capaz de estabelecer um contato mais produtivo, investindo em vazios e encontros? Ou mesmo que Gabriel Sierra desempenhasse diálogo efetivo –isto é, dialogismo, trocas, em que ambos se deixam contaminar– com cada artista? Pois é inevitável a impressão de que a conversa se estabeleceu mais entre Sierra e a curadoria do que entre Sierra e os artistas por ele servidos. O que a princípio apontaria para uma fina afinação entre as demandas curatoriais e as poéticas propostas pelos artistas, converte-se literalmente em uma gigantesca instalação a estender-se por todo o terceiro andar.
Como argumentei acima, vejo como extremamente instigante e positiva a transparência do gesto curatorial –traço de uma conquista importante, a se desenvolver desde a 27ª Bienal; mas, ao literalizar-se de modo excessivamente veemente, provoca a retração das poéticas em jogo, produzidas a partir da singularidade das obras: há homogeneização de um conjunto de diferenças que deveria ser potencializada para que a exposição tenha a força de um impacto sensorial necessário.
Nesse conjunto, os trabalhos que se lançam para fora do espaço acabam por funcionar de maneira importante, ao levar o visitante para além daquela arquitetura unificadora –como o “Extensor”, de João Modé, que estabelece ligação direta entre uma coluna do pavilhão e árvores do parque do Ibirapuera. Do mesmo modo, todas as obras que se localizam em outros espaços do prédio conseguem construir uma presença mais interessante e mais clara (Rubens Mano, Carla Zaccagnini, Alex Pillis etc.), funcionando com certa indepedência do projeto curatorial –e, nesse sentido, reforçando-o de maneira mais efetiva e menos literal.
E torna-se especialmente significativa a programação de eventos e o “jornal 28b”: também aí parece que o projeto curatorial se efetiva de fato, ao viabilizar ações que apontam para diferentes direções e multiplicam vozes, em interessante polifonia –torna-se de fato um instante de alegria verificar que das últimas páginas do “jornal 28b” saltam notícias de âmbito cotidiano (eleições brasileira, norte-americanas, crimes, esportes); subitamente o mundo real aparece lado a lado com as questões e provocações trazidas pelo evento.
Ainda uma última pergunta: por que a presença tão pregnante de obras já bastante conhecidas de certos artistas emblemáticos, como Sophie Calle e Allan McCollum (assim como Carsten Höller)? Há aí certo didatismo que poderia ser evitado, uma vez que é na produção de obras novas, concebidas especialmente para o evento, que este se faz mais agudo e provocador.
Quanto à temática do "vazio", tão necessária à construção desta "parada reflexiva" –pois se vislumbram frestas, áreas de escape, linhas de fuga, configurando afinal outro fluxo de energias para o atual evento, apontando para necessárias mudanças de organização e gestão–, vejo aí também um gesto que poderia se efetivar de modo menos literal, não-ilustrativo: expor o segundo andar na crueza de sua arquitetura é um gesto que produz forte impressão e impacto; mas, à medida que esta imagem se dissipa, percebe-se que foi oferecido ao público sobretudo o emblema de uma arquitetura modernista cheia de promessas idealizadas e utópicas, pouco a pouco desconstruídas por intervenções críticas que repolitizaram, sobretudo a partir da metade final do século XX, tais premissas enquanto resistência não-asséptica, híbrida e múltipla.
O vazio real pós-utópico deixa de se posicionar como emblema ou bandeira de luta, para revelar-se nas membranas de contato, no espaço entre locais diferentes, em conflito e choque. Nesse sentido, a fotografia de Rubens Mano, exibindo o pavilhão desocupado, é mais produtiva e interessante –porque imagetica e inteligentemente mediada– do que a exibição de modo direto de sua arquitetura, gesto que parece trazer à superfície uma aura intimidatória quase hospitalar –pureza, assepsia, descontaminação, são temas que a 28ª Bienal procura deliberadamente enterrar, mas que ao mesmo tempo parece perigosamente oferecer através do esvaziamento sumário do segundo andar.
Entretanto, não tenho dúvidas de que a 28ª Bienal de São Paulo concretiza um excepcional e ousado projeto que, em continuidade com a edição anterior, vai aos poucos recuperando a credibilidade do evento enquanto plataforma de investigação e experimentação: a fórmula “em vivo contato” deveria, a partir de agora, tornar-se emblema permanente das próximas edições, no sentido de forçar que o evento se abra ao mundo real e procure, aí, produzir intervenções e provocações, buscar outros modelos e formatos.
Esta edição se propõe a produzir mudanças e avanços e é nesta direção que deve ser percebida, mesmo que, como qualquer evento de grande porte, tenha se efetivado de maneira desigual na materialização de suas propostas. Se há uma forte reação negativa, isto também deve ser celebrado, uma vez que, quando o contato é vivo, a vaia é viva: quando não se produz qualquer reação, algo está em repouso ou sob forte anestesia –é preciso festejar que as coisas estejam em movimento.
Publicado em 24/11/2008
1 - A convite de Agnaldo Farias, que assim manifestou interesse em dar continuidade a uma conversa iniciada mais diretamente em 2000, quando apresentei no MAM-RJ a instalação “NBP x eu-você”, dentro do projeto Novas Direções – idealizado por Farias quando era curador deste museu.
2 - Somente em 2008 tive oportunidade de comentar publicamente os curiosos episódios que envolveram minha participação na 25ª Bienal, com o projeto “transatravessamento”. Ver http://www.28bienalsaopaulo.org.br/palestra/8-encontro-ricardo-basbaum-antonio-dias.
4 - Ivo Mesquita e Ana Paula Cohen, “Introdução”, 28ª Bienal de São Paulo, Guia, 2008.
6 - Rosalind Krauss, "A Voyage on the North Sea – Art in the Age of the Post-medium Condition", Nova York, Thames & Hudson, 1999.
Ricardo Basbaum
É artista, vive e trabalha no Rio de Janeiro. Expõe regularmente desde 1981. Participou da 25ª Bienal de São Paulo (2002), documenta 12 (2007) e 7ª Bienal de Xangai (2008). É autor de "Além da Pureza Visual" (Zouk, 2007) e professor-adjunto do Instituto de Artes – UERJ.