DE QUE FALAMOS QUANDO FALAMOS DE TEHCHING HSIEH? *
por EMANUEL CAMEIRA do site português ArteCapital.com
Mas quem foi que lhe disse que a arte devia ser vida?
Esta noite improvisa-se de Luigi Pirandello
Ainda desconhecidas para alguns, as performances de Tehching Hsieh (Taiwan, 1950) medem-se literalmente por anos. Também por isso são marcos numa linguagem artística em aberto desde a década de 60 do século , quando outro era já o registo, mais voltado para uma desmaterialização do objecto, refazendo o entendimento formalista sobretudo ao querer privilegiar na obra de arte aspectos de conceito e de processo e, como tão bem notou Lucy Lippard (1), concebendo-a em termos efémeros, interdisciplinares, na directa interacção com o público e próxima do quotidiano. Mas explicar o recente interesse curatorial e académico pelo trabalho de Hsieh implica contudo situá-lo primeiro entre uma teia de circunstâncias onde constam a crescente atenção ocidental a artistas asiáticos (muitos da diáspora europeia e norte-americana), o actual peso dos estudos performativos no quadro da teoria cultural ou mesmo a emergência de projectos expositivos baseados na reconstituição de performances históricas.
Corria o ano de 1974 e Hsieh desembarcava ilegalmente num pequeno porto de Filadélfia. Essa condição de outsider, de imigrante ilegal, constitui aliás algo com que lidará até à amnistia de 1988, decorria a derradeira das suas seis performances, quase todas acontecidas na vibrante cena nova-iorquina. E sob que forma? Sempre a excessiva presença do corpo preso a situações-limite, de intenso desgaste físico e mental: vemo-lo enjaulado no atelier e impedido de qualquer tipo de estímulo (2), contacto material ou humano (pedia-se inclusive o silêncio da audiência nas poucas vezes que a houve), picando o ponto hora a hora, na pele de sem-abrigo, amarrado a Linda Montano pese embora nunca lhe podendo tocar, recusando fruir de actividades de cariz artístico. Obras portanto singularíssimas, as “one year performances”, nelas se intensificaram as ligações da arte com a vida mediante o recurso a uma longa e metafórica duração anual. Diz o artista:
One year is the largest single unit of how we count time. It takes the earth a year to move around the sun. Three years, four years is something else. It is about being human, how we explain time, how we measure our existence. A century is another mark, which is how the last piece was created. (3)
De facto, “Earth” é diferente. A 31 de Dezembro de 1986 Tehching Hsieh nada revela do conteúdo da performance. A arte que produzirá apenas será descrita no fim, treze anos depois. Quem esteve na Judson Church de Manhattan e então assistiu ao anúncio, “I kept myself alive. I passed the Dec 31, 1999”, pôde testemunhar a desconstrução dessa espécie de ontologia da performance associada grosso modo à ideia de acontecimento momentâneo e não tanto à experiência vivida extensamente no tempo. A absoluta diluição da arte na vida, aqui flagrante, mostra uma radicalidade que concretiza o tal princípio de Allan Kaprow segundo o qual the line between art and life should be kept as fluid, and perhaps indistinct, as possible (4). Ora, destituída de parâmetros palpáveis, a obra está na vida de Hsieh. Transfiguração da vida porque no plano da arte ou desmistificação desta por via das contingências do dia a dia (lembre-se a ocasião em que adormece e deixa de picar o ponto ou a rixa de rua que o força a entrar num espaço coberto, a esquadra), parecem surgir enquanto possíveis rotas de sentido.
Julgo ter sido Jacinto Lageira a afirmar a necessidade de na performance reconhecer a integração das componentes física, sensível da acção, e formal, do intelecto. Verdade é que sem sujeito para a viver a forma não ganharia existência. Porém, o performer pensa emergido na especificidade de um corpo já vivido, material pensante, dotado de história. Parte do fascínio de Tehching Hsieh provém daí:
His destination: Manhattan, center of the art world. Once there, though, Hsieh found himself ensnared in the benumbing life on an illegal immigrant. He eked out a living at chinese restaurants and construction jobs, feeling alien, alienated and creatively barren until it came to him: he could turn his isolation into art. Inside an unfinished loft, he could build himself a beautiful cage, shave his head, stencil his name onto a uniform and lock himself away from a year. (5)
Tehching Hsieh, “One Year Performance”, 1985 - 1986
Na performance, a obra encontra-se na imanência da encarnação. Há um sujeito que vejo e me interpela acerca de variados traços da vida individual e social, privacidade, trabalho, liberdade, alteridade. Hsieh estabelece pois com a arte uma nova e visceral vinculação, submetida a sua corporalidade à pura passagem do tempo, a um duradouro e repetitivo conjunto de tarefas e constrangimentos.
Tehching Hsieh parou de criar a partir de 31 de Dezembro de 1999. Alexandra Munroe, curadora sénior de arte asiática no museu Solomon R. Guggenheim arrisca a seguinte interpretação:
maybe he was a man choosing art as a tool to demonstrate a certain philosophical set of conditions, and it served his purpose, so he doesn’t need it anymore. I think he’s bigger than art on some level. I think – I’ll be really extreme here – that he killed art so he could transcend it. (6)
Até dia 18 de Maio uma réplica da jaula construída no âmbito da primeira “one year performance” pode ser vista no MoMA. Um mês antes termina no Solomon R. Guggenheim a exposição “The third mind: american artists contemplate Ásia, 1860-1989”, que documenta a segunda das performances.
Emanuel Cameira
NOTAS
* Título adaptado de De que falamos quando falamos de performance, revista Marte, nº 3, edição da Associação de Estudantes da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, 2008.
(1) Lippard, Lucy R. (1997), Six years: the dematerialization of the art object from 1966 to 1972, California, University of California Press.
(2) Exceptuando a alimentação que diariamente lhe era levada por um amigo.
(3) Retirado da entrevista a Hsieh disponível em www.thebrooklynrail.org/arts/sept03/tehchinghsieh.html
(4) In Harrison, Charles e Wood, Paul (eds.) (2003), Art in Theory 1900-2000 – an anthology of changing ideas, Oxford, Blackwell Publishing, p. 720.
(5) Sontag, Deborah (2009), “The art of pushing the boundaries of life”, in International Herald Tribune, 27 de Fevereiro, disponível em www.iht.com/articles/2009/02/27/arts/artist.php