quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

O Vazio e a Fúria

Folha de S. Paulo, 15 de dezembro de 2008

por Fernando de Barros e Silva

SÃO PAULO - Caroline Sustos (sobrenome de guerra) está presa há mais de 50 dias. Ela integra o grupo que pichou um dos andares do pavilhão do Ibirapuera na abertura da Bienal de São Paulo. Aquela que ficou conhecida como Bienal do Vazio virou, enfim, um caso de polícia.
A prisão desta jovem me parece um exagero absurdo e cruel. Sim, há a lei. Mas imagine o leitor se os "artistas" da especulação imobiliária fossem em cana a cada predação do bem público que patrocinam, não raro em conluio com o poder público, para construir esta cidade tragicamente horrorosa e desumana.
Isso não redime outros vandalismos, claro que não. As artes da pichação podem fazer sentido como ritual de grupo, catarse, terapia, mas o resultado é regressivo social e esteticamente. Não há nenhum valor artístico associado à transgressão gravada nas paredes sujas. Trata-se, antes, da irrupção em língua cifrada de um mal-estar pouco digerido na cultura brasileira.
"Nas paredes surgem pichações monótonas, cuja única mensagem é o autismo: elas exorcizam o eu que não mais existe. (...) Nas ações espontâneas expressa-se a raiva das coisas em bom estado, o ódio por tudo o que funciona e que forma um amálgama indissolúvel com o ódio por si mesmo", escreveu Hans Magnus Enzensberger no ensaio "Visões da Guerra Civil", de 1993.
Como se viesse confirmar o diagnóstico do alemão, a garota, com a voz infantilizada, disse o seguinte: "Eu me identifico com o vazio. Sentia falta de alguma coisa na minha vida, fazia coisas e nada cobria aquilo. Sentia um buraco. Comecei a pichar, foi tapando aos poucos..."
Entre o vazio existencial da jovem Sustos e o vazio conceitual da Bienal há menos identificação do que antagonismo: a fúria da primeira é um impulso desesperado de vida que traz à luz o espírito burocrático e mortificante da segunda.
O templo da arte contemporânea (a Bienal) faz aqui o papel (ou papelão) de museu do que há de pior na tradição nacional. Ou esse qüiproquó artístico-policial não é um sinal das nossas iniqüidades de sempre?

Prisão da pichadora Caroline `Sustos` motiva manifesto

O caso de Caroline Pivetta da Mota, a Caroline `Sustos`, presa em flagrante por ter pichado e depredado o Pavilhão da Bienal de São Paulo junto a um grupo de cerca de 40 jovens, em 27/10/08, durante a exposição da Bienal, está dando o que falar.
Em 13/12/08, a partir das 19h30, no Atelier La Tintota, em São Paulo (SP), um grupo de “artivistas” se reúnem para uma manifestação em defesa de Caroline. Para a iniciativa, Artur Matuck (artista plástico, escritor e professor da Universidade de São Paulo), escreveu um manifesto, reproduzido abaixo na íntegra:

"Caros artivistas do Brasil e do mundo,
Vocês estão informados de um dos resultados da Bienal Internacional de São Paulo que se encerrou hoje? Uma mulher autodenominada pichadora está presa, ameaçada de permanecer encarcerada por até três anos. Caroline `Sustos` foi uma das integrantes do grupo de pichadores que invadiu a mostra. As paredes foram pichadas e repintadas e a mostra não foi prejudicada.
Independente da discussão estética, se a pichação é ou não arte, se se justifica ou não, a atuação deste grupo ao invadir o prédio da Bienal com um grupo de pichadores, foi também um ato expressivo, foi inequivocamente uma manifestação cultural que poderia, deveria ser discutida, avaliada, rejeitada e mesmo eventualmente contida. Que tenha como resultado a detenção de uma mulher apresenta-se como lamentável e inaceitável para as instituições públicas de São Paulo.
Especialmente, a Bienal de São Paulo não deve participar de um ato repressivo que resulte na detenção de Caroline `Sustos` (como assina seus autos de prisão) em suma, em mais uma pessoa encarcerada por motivos muito discutíveis.
Pode-se sim considerar, ao contrario, que a proposta do curador Ivo Mesquita em manter um andar da exposição vazio, para um exercício de reflexão sobre todas as Bienais do mundo, como afirmou, foi devidamente respondida por este grupo de pichadores. Esta resposta representa uma pulsão de uma cidade !
A história tem demonstrado que inúmeras vezes os críticos, curadores e historiadores equivocam-se diante de manifestações artísticas inusitadas. A Bienal de São Paulo teria muito a ganhar se o andar vazio tivesse sido, após esta invasão, voluntariamente oferecido aos pichadores e grafiteiros de São Paulo que aliás projetaram sua arte internacionalmente. O fato da pichação não ser validada e legitimada pode também representar uma ausência de reflexão de críticos e historiadores diante de um fenômeno contemporâneo que escapa de nossos paradigmas habituais.
A abertura da Bienal teria sido um gesto inédito de reconhecimento por uma instituição artística, de uma forma expressiva que se espalhou por toda a cidade e não pode ser simplesmente ignorada. Uma discussão ampla e bem informada sobre o fenômeno cultural da pichação é relevante desde que na medida em que não é validado enquanto expressão artística pode ser considerado como vandalismo e justificar repressão.
Diante de todo o exposto, proponho que seja organizado um protesto, seja presencial seja virtual, por todos os meios possíveis, convocando `artivistas` sejam brasileiros sejam internacionais no sentido de convocarmos nossas energias para que esta mulher seja liberada o quanto antes.
Aqueles dentre nós que possam acessar jornalistas, advogados, promotores de justiça, políticos, professores, estudantes, todos que puderem de algum modo interferir a favor, reenviarem esta mensagem e solicitar solidariedade.
Aqueles que puderem traduzir este protesto para outras línguas e enviar para grupos de discussão e instituições estrangeiras favor engajarem-se o quanto antes.
Divulguem este protesto, disseminem esta idéia para que Caroline seja libertada o quanto antes e para que as instituições artísticas e culturais brasileiras não se tornem cúmplices neste cerceamento da liberdade e da expressão”.

- Artur Matuck (artista plástico, escritor e professor da Universidade de São Paulo).