segunda-feira, 5 de abril de 2010

Artista da Bienal 2010



Anri Sala, que estará na Bienal, questiona a política a partir do som

Um casal se separa. As perguntas dela são murmúrios que se perdem no espaço. As respostas dele são solos violentos de bateria. Tambores abafam o discurso verbal e o som embaralha forma e conteúdo.

O casal no vídeo "Answer Me" (Responda-me), do artista Anri Sala, 36, tenta desfazer o romance dentro do domo erguido pelo arquiteto Buckminster Fuller sobre as ruínas da Berlim arrasada pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Era a antiga estação de espionagem dos Aliados, que tentavam decifrar o tráfego radiofônico vindo do outro lado do muro.

Domo erguido pelo arquiteto Buckminster Fuller sobre as ruínas da Berlim arrasada pela Segunda Guerra Mundial.

Toda a obra desse artista albanês, um dos maiores nomes escalados para a próxima Bienal de São Paulo, que começa em setembro, se estrutura em torno do som e de sua relação com a arquitetura na tentativa de aferir mudanças políticas.

O videoartista albanês Anri Sala que visitou São Paulo para palestra e pesquisas
Seu vídeo sobre a separação entre rajadas de tambor não estará na mostra paulistana, mas dá ideia do que será seu próximo trabalho, ainda em preparação. "É uma forma de fugir de simbolismos de linguagem, de escapar dos grandes temas, já que o som é menos construído, não pode ser emoldurado", afirma Sala em entrevista à Folha num hotel em São Paulo.

Essa moldura impossível do som é sempre um prédio ou um contexto explorado por seu tipo de acústica, mas nunca vazio de história. Se não o domo geodésico de Buckminster Fuller, pode ser, então, uma sala de música aposentada em Bordeaux ou a Casa de Vidro de Lina Bo Bardi, que o videoartista visitou no Brasil.

Ele não deve usar os projetos da arquiteta no trabalho que vai mostrar em São Paulo, mas garante que a nova obra tem a ver com o contexto da cidade e o tema de arte e política desta edição da Bienal. Sala antecipou à Folha que seu próximo filme também gira em torno de um prédio agora interditado, mas ainda "rico em memórias".

Filme mudo

"A música ressuscita o passado desse prédio; as novas melodias fazem o som do passado parecer mais atual do que o do presente."

Do mesmo jeito que explorou o eco dos domos em Berlim, Sala agora busca resquícios da sonoridade punk que encheu nos anos 60 a casa de concertos da Cité du Grand Parc, em Bordeaux, cenário do filme que estará na Bienal em setembro. "Estou interessado na ideia de fricção que o som pode criar."

Num de seus primeiros trabalhos, Sala buscou a mesma fricção. Encontrou um filme mudo de um discurso de sua mãe, uma militante comunista, feito na época do regime. Mandou então legendar o filme com as palavras perdidas, reinterpretadas por leitura labial. Diante das novas imagens, Valdet, a mãe do artista, não acredita na tradução das palavras e nega ter pensado daquele jeito.

Mais do que o resgate de um discurso perdido, a tradução da obra exalta a passagem linguística entre dois momentos históricos, a Albânia antes e depois do comunismo. "Mudanças políticas trazem uma mudança de sintaxe, o que parecia articulado nos anos 60 e 70 já não é mais hoje", diz Sala.

Também herança de um regime obsoleto, há mais distinções entre branco e negro na língua nativa do Senegal, país africano dominado pela França até os anos 60, do que para outras cores, como azul e vermelho. Sala explora isso num filme em que três crianças repetem os nomes dos tons entre o preto e o branco até virar uma espécie de melodia abstrata.

"Há algo muito importante nesse espaço intervalar, quando a língua se transforma em som puro", diz. "São tão sensíveis à cor da pele que resistiram às cores tradicionais. Não havia motivo para brigar pelo vermelho, pelo amarelo. É essa linguagem desconhecida repetida até o ponto em que acaba se tornando melódica."

SILAS MARTÍ da Folha de S.Paulo