segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

A modernidade ocupa o mosteiro

Exposição reúne três artistas contemporâneos que dialogam com arquitetura românica do São Bento

Antonio Gonçalves Filho do Estadão

Alguém já disse que os intelectuais rejeitam a percepção porque esta leva a emoções profundas - para não dizer à espiritualidade, palavra que o dicionário da arte contemporânea parece ter expurgado. Pois foi justamente numa conversa entre intelectuais, o pintor Marco Giannotti e o monge Carlos Eduardo Uchôa, durante a exposição do primeiro no Gabinete de Arte Raquel Arnaud, em maio do ano passado, que o assunto arte e espiritualidade veio à tona. Presos a um esquema em que a arte ficou refém do mercado, ambos cogitaram a possibilidade de escapar dos cubos brancos das galerias para ganhar um espaço público pouco convencional. E nenhum lugar parecia mais adequado para discutir a relação arte e espiritualidade que um mosteiro. Até porque o monge artista Carlos Uchôa, autor de uma tese sobre Picasso, é beneditino, o de São Bento foi escolhido para abrigar uma exposição onde 16 salas são ocupadas por pinturas, fotos, vídeos e instalações dos dois artistas citados mais o parceiro da dupla, José Spaniol.

Projeto e intervenção contemplado com a verba de um programa do Iphan e patrocinado pela Petrobrás, a exposição Arte e Espiritualidade tem uma proposta ousada: a de dialogar com a arquitetura do mosteiro, um prédio construído no estilo românico das grandes abadias europeias e sufocado pela eclética arquitetura dos vizinhos no centro de São Paulo. Há na mostra desde pinturas de grandes dimensões, que representam temas como o das 14 estações da via-crúcis, executadas por Giannotti e Uchôa, até uma instalação de troncos de eucaliptos que representam o firmamento, passando por genuflexórios fixados de ponta-cabeça no teto dos parlatórios, que dão a eles um aspecto de cenário de um filme de William Friedkin - essas duas últimas obras assinadas por Spaniol. Há ainda lugar para fotografias líricas que evocam a espiritualidade por meio de sombras projetadas em piscinas e em rochas, ambas reveladoras das semelhanças da linguagem artística de Giannotti e Uchôa.

O monge, que mantém seu ateliê ao lado do mosteiro, observa que as suas não são obras de arte religiosa stricto sensu. Ele não se dedica a nenhum tipo de arte sacra, mas existe, segundo o artista, uma religiosidade que perpassa o trabalho. Uchôa, que pintou os passos da Paixão desafiado por Giannotti, realizou a série de 14 telas pensando nas estações como uma "experiência de passagem", em que as figuras surgem e desaparecem no quadro, provocando o olhar do espectador. Autor de pinturas claras, que usavam o branco com a liberdade de um Cy Twombly, nessa série proliferam os vermelhos, trazendo uma carga de violência ausente em seus trabalhos anteriores.

Uchôa vê na arte contemporânea - mesmo nas instalações escatológicas de Damien Hirst e nas mutilações de Marina Abramovic - uma certa espiritualidade resultante da experiência do sofrimento, da dor. Para Giannotti, a arte contemporânea não aboliu a espiritualidade, apenas mostrou que "a beleza não está mais no deleite da contemplação, mas no juízo de alguém que busca um mundo melhor". E lembra inúmeros exemplos de artistas que fizeram do credo de Kandinski - de que toda grande arte é espiritual - obras monumentais, como as capelas assinadas por Matisse, Rothko, Volpi e pelo arquiteto suíço Peter Zumthor, prêmio Pritzker de 2009.

Sobre o papel da espiritualidade na arte contemporânea, José Spaniol, evocando o exemplo do alemão Joseph Beuys, mostra como é possível tratar figuras da simbologia cristã fora da tradição sem ser ofensivo. Sua instalação Ascensão é simples: são armários suspensos por estacas de eucalipto. A verticalidade é intencional. Basta apenas olhar para o alto. É para lá que aponta sua arte.

Arte, espírito e a metrópole


No aniversário da cidade, o Mosteiro de São Bento abre suas portas pela primeira vez ao público para mostrar obras contemporâneas em seu prédio centenário


Antonio Gonçalves Filho do Estadão

A busca da espiritualidade entre artistas modernos e contemporâneos, de Kandinski a Bill Viola, quase sempre rendeu obras-primas que evocaram a tradição pictórica medieval, renascentista ou barroca, atualizaram a iconografia dos grandes mestres, reutilizaram seus temas ou simplesmente inauguraram um novo capítulo na história da arte. Os exemplos são inúmeros e incluem Matisse, Rothko e, mais recentemente, o pintor alemão Gerhard Richter, que assinou há três anos os novos vitrais da Catedral de Colônia, na Alemanha.


Marco histórico da tradição cristã em São Paulo, o Mosteiro de São Bento, fundado em 1598 e até hoje no mesmo lugar, no centro da cidade, abre pela primeira vez suas dependências para mostrar arte contemporânea ao grande público, graças à iniciativa de um monge pintor, um Andrei Rublev extemporâneo no mundo escatológico de Damien Hirst. O monge, também diretor da Faculdade São Bento, Carlos Eduardo Uchôa, comemora seus 14 anos de mosteiro inaugurando uma ambiciosa exposição ao lado de dois outros artistas paulistanos conhecidos, Marco Giannotti e José Spaniol, todos eles nascidos na década de 1960.

São 16 salas ocupadas por pinturas, fotografias, vídeos e instalações dos três artistas, que apresentam trabalhos individuais e outros concebidos em parceria. Dialogando com o prédio do mosteiro (que não é o original do século 16, mas um projeto do arquiteto alemão Richard Berndl realizado há exatamente um século, em 1910), algumas dessas obras foram concebidas especialmente para espaços reservadíssimos como o parlatório (onde os monges recebem visitas) e a capela privada dos religiosos, até então mantida longe dos olhos do público. Ela é invadida por imagens da cracolândia paulistana, filmadas pelo monge Carlos Eduardo Uchôa num dia de chuva, provocando um violento contraste entre a paz do mosteiro e o genocídio praticado na vizinhança pelos traficantes de crack.

São imagens fantasmagóricas de dependentes vistos ao longe e incorporados ao cenário da metrópole sob a chuva torrencial que tem castigado São Paulo nas últimas semanas. Dois pisos abaixo, outra instalação, projetada pela dupla Marco Giannotti e José Spaniol, faz o percurso inverso. No auditório do mosteiro, uma projeção em looping de velas queimando em tempo real revelam aos visitantes o que fazem, afinal, esses monges no centro de uma cidade deteriorada: oram pela sofrida comunidade da urbe.