"Quero reavaliar a arte brasileira", diz curador da Bienal de SP
por Fabio Cypriano da Folha de S.Paulo
O curador pernambucano Moacir dos Anjos, 43, vai assumir sua curadoria mais ambiciosa, depois de obter elogios pela condução de mostras como a "Paralela", em 2004, e o "Panorama da Arte Brasileira", no MAM-SP, em 2007. A 29ª Bienal de São Paulo tem abertura marcada para setembro de 2010. O crítico de arte Agnaldo Farias vai ser o cocurador do evento.
Qual o papel da Bienal de São Paulo hoje?
Moacir dos Anjos - No âmbito internacional, contribuir para afirmar um modelo de exposição que guarde distância tanto do imediatismo que rege as feiras de arte quanto da estabilidade de valores que reina em museus. No contexto brasileiro, consolidar-se como instituição que, além de oferecer momentos de encantamento ao público, assuma com vigor sua missão crítica e formadora.
Pensando nesses dois temas --formação e encantamento-- quais Bienais paulistas se aproximaram do que você pretende organizar?
Dos Anjos - Das realizadas nas duas últimas décadas, creio que a 23ª (1996) e a 24ª (1998) foram as que melhor articularam essas duas dimensões que, acredito, devam estar simultaneamente presentes em uma exposição de arte.
Moacir dos Anjos, 46, será o curador da próxima Bienal de SP; ele quer "reavaliar a arte brasileira"
Numa pesquisa da Folha Online, a "a discussão do vazio" foi o que mais marcou a última bienal. O que você gostaria que marcasse sua Bienal?
Dos Anjos - O fato de ser uma exposição que levou a arte a sério. O que não se confunde, em absoluto, com querer uma mostra sisuda. Levar a arte a sério é apostar na sua capacidade de mover as pessoas ao ponto delas, no limite, mudarem os parâmetros com que se relacionam com seu entorno.
Que exposição já provocou isso em você?
Dos Anjos - Lembro-me, por exemplo, da visita que fiz a uma exposição do Anselm Kiefer, no MAM de São Paulo, em 1998. Embora seja um artista que hoje não admiro tanto quanto já admirei, aquele foi um desses momentos em que a arte provou, para mim, do que é capaz. Não há texto ou elaboração discursiva quaisquer capazes de proporcionar o que senti naquela mostra, onde a dor da guerra era abordada de modo direto sem ser meramente ilustrativa, e era, talvez até por isso, transformada em uma questão que importa a todos.
De certa forma, a arte mudou mesmo sua vida, afinal você era economista...
Dos Anjos - Sim, esse é um "statement" curatorial absolutamente sincero, porque é a minha própria história.
Um dos riscos que se pode cair ao se preocupar com "sensibilizar" é cair no espetáculo, não?
Dos Anjos - É evidente que existe um desafio em se fazer uma mostra cativante que, ao mesmo tempo, não apele ao consumo fácil de uma imagem, de uma ideia ou de uma forma. Costumo dizer que a Bienal tem o seu tempo próprio, que não é o do museu nem o da feira de arte. E o desafio é justamente trabalhar nesse intervalo, pois é aí que se pode afirmar a arte como algo sensoriamente envolvente e que tem, por isso mesmo, e não apesar disso, um papel relevante para desempenhar no mundo.
De que maneira isso será possível na 29ª Bienal?
Dos Anjos - Não há fórmulas, sendo necessário lançar mão de um conjunto de estratégias articuladas. E uma das principais diz respeito à forma de apresentação dos trabalhos no espaço. Queremos criar um ritmo expositivo envolvente e ritmado, que rompa a monotonia tão comum em grandes mostras e que faça o visitante se aproximar dos trabalhos. Crucial para isso será a criação de praças no meio da mostra, locais que servirão para descanso, reflexão e também para apresentação de performances ou palestras sobre as obras que estarão naquela vizinhança, permitindo uma relação diferenciada e diversificada com a arte ao longo do percurso.
No projeto da mostra, você sugere que a Bienal apresente 150 artistas. Quantos desses, você gostaria que fossem brasileiros? Por que a Bienal de São Paulo precisa ser uma vitrine para a arte brasileira se a Documenta de Kassel não faz essa pressão pela arte alemã?
Dos Anjos - Não há um número preestabelecido de artistas brasileiros na Bienal, embora a insipiência e a fragilidade dos mecanismos institucionais para absorção e circulação da produção artística existentes no Brasil --principalmente se comparados com os de um país como a Alemanha-- até possam justificar uma presença relativamente forte de artistas brasileiros na mostra. Desde, é evidente, que isto não signifique uma posição paternalista ou implique um rebaixamento dos padrões adotados para o conjunto da mostra. Mas o fato é que a história da Bienal de São Paulo é a de uma instituição cuja missão é a de se abrir ao mundo, ao diferente, e esta edição buscará honrar esse compromisso.
Como você define a "natureza irredutível da arte" explicitada no projeto?
Dos Anjos - Como aquilo que faz da arte uma fonte de conhecimento do mundo que não pode ser encontrado em outras esferas: Nem na ciência, nem na religião, nem no âmbito mais controlado da cultura. A arte é aquilo que sempre escapa às tentativas de redução a outros campos, sendo, em alguma medida, intraduzível. Paradoxalmente, é justamente por isso que ela importa tanto.
Independente dos nomes que estejam sendo cogitados e convidados para a Bienal, quais os artistas que, parafraseando o Mario Pedrosa citado em seu projeto, exerçam a experiência da liberdade?
Dos Anjos - São muitos, e não convém, evidentemente, citar muitos nomes a esta altura do desenvolvimento do projeto. Mas, menciono como exemplos de artistas visuais consagrados que ainda assim fazem da arte um "exercício experimental da liberdade", Artur Barrio e Jimmie Durham. Ou como fazem, no âmbito da música popular, Tom Zé ou Radiohead. Ou, no cinema, Chantal Akerman, Abbas Kiarostami ou Pedro Costa. Ou Jérôme Bel na dança.
Folha - A Bienal pretende reavaliar a história da arte brasileira após os anos 1960 e 1970. O que isso significa? Os anos 1980 não seriam os anos da pintura, como virou bordão?
Dos Anjos - O que se pretende é tão-somente sugerir, através da seleção de obras de artistas brasileiros que permearão toda a mostra, que essa visão de que tivemos uma arte política nos anos 1960 e 1970 e, a partir dos anos 1980, uma arte descompromissada com a realidade é equivocada. Arte política é aquela capaz de mudar o modo como experimentamos o mundo, não importando apenas se ela tematiza ou não conflitos, e muito menos qual o meio expressivo de que faz uso --pintura, texto, vídeo, instalação ou gravura.
Folha - Você pode dar alguns exemplos?
Dos Anjos - Há um trabalho, feito ainda nos anos 1930, que acho que pode ser tomado como um paradigma, na arte brasileira, da possibilidade de se pensar a relação entre arte e política de uma maneira mais ampla e relevante. É a Experiência Nº 2 de Flávio de Carvalho, aquela ação, ou proto-performance, em que ele caminha, de chapéu na cabeça, no sentido contrário da massa de fiéis que acompanha uma procissão, causando revolta e quase seu linchamento. Saltando direta e propositadamente para os anos 1980, poderia citar, entre vários outros exemplos possíveis, Rosângela Rennó ou Nuno Ramos, artistas que iniciam suas carreiras naquela década e cujas obras têm, assim como a Experiência Nº 2 de Flávio de Carvalho, essa capacidade de, mesmo quando não tematizam a política, nos fazer olhar o que está à nossa volta de um modo diferente; e se a arte faz isso, é evidente que ela faz política.
Folha - Nos anos 60 e 70, artistas e a arte tiverem uma resposta bastante clara ao contexto da época, criticando a ditadura e propondo novas formas de relação com a arte. O que a arte tem de importante para o contexto atual?
Dos Anjos - O mundo atual é marcado por um sem número de conflitos que nos atravessam a toda hora em intensidades e de maneiras distintas. E são muitos os artistas que, de diferentes maneiras, respondem a essa situação complexa, seja tentando compreendê-la ou intervindo nela diretamente. Respostas que são tanto mais relevantes quando vão além da ilustração desses conflitos ou da afirmação de princípios humanistas, por mais meritórios que estes sejam. O que torna a arte importante no contexto atual é justamente seu poder de abrir fissuras, através de seus próprios meios e valendo-se de uma língua que é só sua, nas convenções que ancoram nosso entendimento da realidade.