Nos seis dias que passou numa base militar de Basra, no Iraque, Steve McQueen não teve acesso às linhas de combate. Ficou sozinho no quartel, à espera de notícias. Eram mortes que se amontoavam nas pilhas de estatísticas da presença britânica na guerra ao terror.
Estava lá a convite do governo, para produzir uma obra de arte que só ganhou formas em casa. Ele voltou a Londres disposto a dar rosto aos números anônimos que identificam os mortos em conflito. Britânico que estará na próxima Bienal de São Paulo, McQueen tenta há sete anos fazer circular no Reino Unido selos postais com as caras de homens e mulheres que perderam a vida.
"Queria que todos no país participassem desse ato", conta o artista, em entrevista à Folha. "Teriam um abalo muito maior sobre a psique se vissem a cara desses soldados todo dia, quando pegassem suas cartas."
Isso não deu certo até agora. Mas "Queen and Country", que virou uma instalação com selos reunidos num grande gabinete, engrossa um movimento de artistas que tentam sublimar o anonimato das baixas de guerra por meio de retratos, filmes e fotografias.
Num eco distante do impacto provocado pela Guerra do Vietnã entre artistas dos anos 70, que turbinaram a linguagem da performance, conflitos ressurgem como motor potente por trás de uma nova arte política.
"As pessoas continuam usando o próprio corpo como arma", diz o artista. "Agora também usam esse corpo como protesto, é uma situação que não descarta a presença física e o uso dela para fazer guerra."
Suas cartelas de selos nunca enviados transitam por museus em gavetas de madeira. Quase 22 mil pessoas assinaram um manifesto pressionando o Royal Mail, o correio britânico, a adotar os selos, mas em vão. Enquanto isso, a National Portrait Gallery, em Londres, volta a exibir esses soldados numa exposição em março.
Desenhos
Vai disputar a atenção do público com rostos dos norte-americanos que morreram no Iraque e no Afeganistão. São desenhos da americana Emily Prince, agora na Saatchi Gallery, em Londres. Desde que estourou a guerra no Iraque, em 2003, ela visita sites com retratos dos mortos e refaz à mão contornos de suas caras.
Na série, espécie de performance obsessiva, Prince já retratou mais de 5.000 anônimos que encontrou on-line em páginas como Military City. "A questão era tornar mais real essas estatísticas", conta a artista em conversa com a Folha. "Ver a imagem de um desconhecido ainda é abstrato, mas é menos que números."
Prince tenta aniquilar essa abstração. Encara cada retrato como cartografia da memória apagada por números e relatórios. Anula o que poderia ser só efeito retórico tentando construir o mais exato arquivo de desenhos, humanos, no lugar de fotos, maquinais.
"Desenho quase em tempo real, porque me irritam as ausências", diz Prince. "É um arquivo imperfeito, sei que nem todos eles estão ali, mas costumo voltar para ver se esqueci alguém."
Enquanto McQueen examina os desdobramentos do corpo como arma, Prince destrincha a natureza desse corpo. Enxerga o Exército como grande entidade anônima, de indivíduos com personalidades distintas engolidas no rolo compressor das táticas de guerra.
"Pensava no soldado como o garoto que já pagava de machão no colegial, mas agora vejo que são normais", diz Prince. "O Exército, como corpo, é capaz de cometer atrocidades, mas espero que entendam que há indivíduos ali, que não têm culpa."
Em Fort Hood, no Texas, a maior base militar dos Estados Unidos, esses garotos, com ou sem culpa, tentam garantir a individualidade. Embaixo dos uniformes, tatuam seus próprios medos, desejos, esperanças.
Uma documentarista de Austin viu no ritual pré-embarque um possível retrato da guerra. Passou três anos visitando um estúdio de tatuagem vizinho à base, entrevistando os soldados.
"Com a agulha cavando na pele, eles revelam coisas que não diriam numa entrevista comum", diz Nancy Schiesari, diretora de "Tattooed Under Fire" (tatuado sob fogo), que pode ser visto no YouTube. "É uma forma de arte: esses tatuadores canalizam os sentimentos dos soldados em desenhos que encaixam sobre os músculos."
Depois do corpo como arma e do corpo anônimo do Exército, Schiesari estuda o corpo ameaçado, tingido para a batalha. Um soldado mandou gravar o desenho de um feto numa jarra, outro fez uma caveira, mas o mais comum é fazerem o próprio nome, em partes do corpo que esperam ficarão intactas caso sejam mutilados.
Estava lá a convite do governo, para produzir uma obra de arte que só ganhou formas em casa. Ele voltou a Londres disposto a dar rosto aos números anônimos que identificam os mortos em conflito. Britânico que estará na próxima Bienal de São Paulo, McQueen tenta há sete anos fazer circular no Reino Unido selos postais com as caras de homens e mulheres que perderam a vida.
"Queria que todos no país participassem desse ato", conta o artista, em entrevista à Folha. "Teriam um abalo muito maior sobre a psique se vissem a cara desses soldados todo dia, quando pegassem suas cartas."
Isso não deu certo até agora. Mas "Queen and Country", que virou uma instalação com selos reunidos num grande gabinete, engrossa um movimento de artistas que tentam sublimar o anonimato das baixas de guerra por meio de retratos, filmes e fotografias.
Num eco distante do impacto provocado pela Guerra do Vietnã entre artistas dos anos 70, que turbinaram a linguagem da performance, conflitos ressurgem como motor potente por trás de uma nova arte política.
"As pessoas continuam usando o próprio corpo como arma", diz o artista. "Agora também usam esse corpo como protesto, é uma situação que não descarta a presença física e o uso dela para fazer guerra."
Suas cartelas de selos nunca enviados transitam por museus em gavetas de madeira. Quase 22 mil pessoas assinaram um manifesto pressionando o Royal Mail, o correio britânico, a adotar os selos, mas em vão. Enquanto isso, a National Portrait Gallery, em Londres, volta a exibir esses soldados numa exposição em março.
Desenhos
Vai disputar a atenção do público com rostos dos norte-americanos que morreram no Iraque e no Afeganistão. São desenhos da americana Emily Prince, agora na Saatchi Gallery, em Londres. Desde que estourou a guerra no Iraque, em 2003, ela visita sites com retratos dos mortos e refaz à mão contornos de suas caras.
Na série, espécie de performance obsessiva, Prince já retratou mais de 5.000 anônimos que encontrou on-line em páginas como Military City. "A questão era tornar mais real essas estatísticas", conta a artista em conversa com a Folha. "Ver a imagem de um desconhecido ainda é abstrato, mas é menos que números."
Prince tenta aniquilar essa abstração. Encara cada retrato como cartografia da memória apagada por números e relatórios. Anula o que poderia ser só efeito retórico tentando construir o mais exato arquivo de desenhos, humanos, no lugar de fotos, maquinais.
"Desenho quase em tempo real, porque me irritam as ausências", diz Prince. "É um arquivo imperfeito, sei que nem todos eles estão ali, mas costumo voltar para ver se esqueci alguém."
Enquanto McQueen examina os desdobramentos do corpo como arma, Prince destrincha a natureza desse corpo. Enxerga o Exército como grande entidade anônima, de indivíduos com personalidades distintas engolidas no rolo compressor das táticas de guerra.
"Pensava no soldado como o garoto que já pagava de machão no colegial, mas agora vejo que são normais", diz Prince. "O Exército, como corpo, é capaz de cometer atrocidades, mas espero que entendam que há indivíduos ali, que não têm culpa."
Em Fort Hood, no Texas, a maior base militar dos Estados Unidos, esses garotos, com ou sem culpa, tentam garantir a individualidade. Embaixo dos uniformes, tatuam seus próprios medos, desejos, esperanças.
Uma documentarista de Austin viu no ritual pré-embarque um possível retrato da guerra. Passou três anos visitando um estúdio de tatuagem vizinho à base, entrevistando os soldados.
"Com a agulha cavando na pele, eles revelam coisas que não diriam numa entrevista comum", diz Nancy Schiesari, diretora de "Tattooed Under Fire" (tatuado sob fogo), que pode ser visto no YouTube. "É uma forma de arte: esses tatuadores canalizam os sentimentos dos soldados em desenhos que encaixam sobre os músculos."
Depois do corpo como arma e do corpo anônimo do Exército, Schiesari estuda o corpo ameaçado, tingido para a batalha. Um soldado mandou gravar o desenho de um feto numa jarra, outro fez uma caveira, mas o mais comum é fazerem o próprio nome, em partes do corpo que esperam ficarão intactas caso sejam mutilados.
SILAS MARTÍ da Folha de S.Paulo