Entrevista publicada originalmente no site português artecapital.net 03-02-2009
Por Sílvia Guerra
Novembro-Dezembro, 2009
Nicolas Bourriaud (n. 1965) é um dos filhos pródigos da arte contemporânea francesa. É simultaneamente curador, ensaísta, crítico de arte e globe-trotter. A sua carreira como curador adquiriu visibilidade a partir de algumas exposições internacionais em que participou, tais como: “Aperto 93” (Bienal de Veneza, sob curadoria geral de Achille Bonito Oliva), “Traffic” (CAPC, Bordéus, 1996), “Experience de la Durée” (Bienal de Lyon, 2005), e Bienal de Moscovo (2005 e 2007). Teorizou as novas práticas artísticas que eclodiram no final dos anos 90 e inícios do século XXI, com artistas como Philippe Parreno, Dominique Gonzalez-Foerster ou Rirkrit Tiravanija. Publicou diversos livros assumindo a autoria de novas teorias sobre a arte, como a da estética relacional. Aumentou a sua notoriedade quando, entre 2001 e 2004, protege a especificidade do Palais de Tokyo, lugar dedicado à criação contemporânea da cena cultural parisiense: que co-dirigiu com Jérôme Sans. Recentemente, em 2008, comissariou “Estratos” em Murcia, Espanha, e “La Consistance du Visible” na Fundação Ricard, em Paris. Em 2006 foi nomeado curador da Trienal da Tate, que decorre de 3 de Fevereiro a 26 de Abril de 2009. Foi sobre o conceito camaleónico de modernidade que trocámos aqui algumas ideias.
SG: Para a Trienal da Tate, em Londres, propôs um novo conceito, que é o de “Altermodern”. Esta outra modernidade é a chave de interpretação desta grande exposição colectiva. Gostaria de saber se com este novo neologismo inventado por si, procura medir o nosso afastamento em relação ao movimento histórico da modernidade?
NB: O “Altermodern” significa um duplo afastamento, seja em relação ao “pós-moderno”, seja em relação ao período moderno do século XX. Hoje a palavra “moderno” evoca duas coisas: o período histórico delimitado pela arte moderna, e a modernização do mundo, sob a égide do “progresso”. Ora aquilo a que chamamos moderno é um estado de espírito recorrente na história, que assume diferentes formas segundo as várias épocas.
SG: Como se liga o “altermodern” à contemporaneidade? É um seu sinónimo ou é uma maneira de repensar a noção de contemporâneo?
NB: O “Altermodern” é, para mim, a forma emergente e contemporânea da modernidade, ou seja, a de uma modernidade que corresponde aos desafios do século XXI, e especificamente ao momento histórico que vivemos e no qual nos inscrevemos, para o bem e para o mal: a globalização. Ser moderno, no século XX, correspondia a pensar de acordo com formas ocidentais; hoje, a nova modernidade produz-se segundo uma negociação planetária. Doravante, na sua reflexão plástica, os artistas tomarão como ponto de partida uma visão globalizada da cultura, e já não as conhecidas “tradições”: servem-se destas para se conectarem com o universal, para experimentarem novas vias. Por exemplo, Pascale Marthine Tayou utiliza os padrões culturais africanos para questionar os valores a partir dos quais os vemos a partir de Nova Iorque ou Berlim.
SG: Como poderíamos definir o significado dessa noção para re-interpretar outras práticas culturais?
R: “Alter” significa outro, mas o prefixo evoca igualmente a multitude. Em política, a alter-globalização é uma constelação de lutas locais que visam combater a homogeneidade mundial. No domínio cultural, “alter-moderno” significa algo semelhante, é como um arquipélago de singularidades conectadas umas às outras.
SG: A Documenta 12 de Kassel foi também um momento no qual se perguntou se a modernidade não seria a nossa Antiguidade. Por seu lado, o antropólogo Bruno Latour defende a ideia de que nunca fomos modernos. Mas, hoje em dia, poderemos ser algo para além de modernos?
NB: Infelizmente, sim… O planeta inteiro está a ser percorrido por crispações identitárias, por retornos fundamentalistas, por radicalismos religiosos e políticos, e todos colocam em primeiro plano as raízes das assim chamadas “ identidades culturais”, que são um dogma. Deste facto, nasce hoje a necessidade e importância de fazer a recomposição de uma modernidade, cujo gesto primordial é o do desenraizamento do solo, do exôdo das tradições identitárias e das comunidades constituídas. No que diz respeito à Documenta, não podemos esquecer que o regresso à Antiguidade foi o sinal durante um longo período de tempo, do aparecimento da modernidade, cujo exemplo mais evidente é o Renascimento italiano. É certo que o modernismo do século XX constitui a nossa Antiguidade – aonde temos de regressar – mas para dar um mais efectivo passo em frente. Hoje irritarmo-nos com este revival modernista que pesa nas grandes exposições mas, na minha opinião, ele é apenas mais um fetichismo.
SG: Entre os artistas que convidou para esta Trienal, estão alguns que trabalham sobre dois vectores que você considera irreductíveis do conceito de “Altermodern”: o tempo e a história, como um novo continente. Poderia apresentar-nos o trabalho de alguns desses artistas?
NB: Os artistas procedem hoje por encadeamento de objectos visuais. Esta é a sua metodologia, e fazem-no através de obras que constituem arrêts sur l’ image” de um enunciado em perpétuo crescimento. Para fazer referência à obra de um artista emblemático, como é Seth Price, posso dizer que as suas formas permanecem em estado de cópia, mas sem adquirirem um estatuto como transitórias. As imagens são instáveis, estão à espera, entre duas traduções, de serem perpetuamente transcodificadas. Price desmotiva uma vã necessidade de classificar as suas obras, de lhes atribuir um lugar preciso na cadeia de produção e de tratamento da imagem. Os mesmos motivos são retomados com mais ou menos variantes em obras distintas. Outros como Nathaniel Melliors ou Spartacus Chetwynd, exploram a história como se ela fosse um espaço. Charles Avery, pelo contrário, cria a ficção de um universo inteiro que aboliu toda a noção de contemporaneidade. Todos eles fazem um mix de épocas e de estilos, tal como “semionautas” que produzem percursos através de diferentes épocas e estilos e a partir dos signos que pertencem a espaços-tempos afastados uns dos outros.
SG: Numa entrevista disse que quando tinha perguntas fazia exposições, e que quando tinha respostas, escrevia livros… Que conclusões se pode tirar dessa metodologia? Como vê a articulação do seu trabalho com o momento histórico (ele mesmo tão volátil)?
NB: O meu trabalho consiste em tentar fazer aparecer figuras no caos da produção contemporânea, ou seja, inventar chaves de leitura, utensílios teóricos que permitam ver a arte de hoje segundo um certo prisma. Esse trabalho efectua-se de forma discursiva num livro e transforma-se quando se trata de uma exposição: detesto a ideia de alinhar obras, uma após outra num museu, de forma a que se conformem ao que esperamos delas. Sabendo que toda a (boa) obra de arte é semionautas, obviamente que resiste à classificação sob a égide de uma teoria. Uma exposição é então um espaço-tempo de diálogo, um filme no qual me contento em fazer a montagem e para o qual escrevo as legendas.
SG: Conhecemos as suas útimas obras, Esthétique relationnelle e Postproduction, que permitiram teorizar a arte após a morte da história da arte dos anos 90. Com o seu proximo livro Radicant, em que analisa a nova geração, o que nos é dado a conhecer?
NB: A Trienal “Altermodern” e o ensaio Radicant, completam-se e respondem um ao outro, já que foram concebidos em conjunto. Em “Altermodern”, onde procuro descrever as suas condições de emergência, existe a articulação em torno de noções como a de precariedade (a arte que chama a atenção para a fragilidade de todas as construções sociais e mentais), de errância (como porta de saída do pós-moderno), de forma-viagem (na qual a obra se apresenta como percurso, e não mais como uma superfície ou volume), ou de implicação de temporalidades (a tessitura de espaços-tempo heterogéneos na obra).
SG: Poderia explicar-nos como trabalha com os artistas e criadores que acompanha? Qual é o seu modus operandi enquanto curador?
NB: Cada exposição tem a sua própria história. Esta foi concebida no quadro de uma série de discussões com actores do mundo da arte: por exemplo, a série de quatro “Prólogos” que precederam a Trienal, e que implicaram a participação de outros teóricos, de artistas e de críticos de arte. Depois, poderia dizer que, de uma forma mais geral, esta exposição foi concebida como se fosse um debate alargado.
SG: E qual é o papel do crítico de arte nos nossos dias?
NB: Hoje, mais do que nunca, é indispensável designar as coisas e fazer a sua análise. Perante um mundo como o actual, que progressivamente se reduz mais às dimensões de um supermercado de imagens e de signos, é urgente reafirmar o valor do comentário e da selecção. Isto poderia resumir-se deste modo: eu, um indivíduo entre outros, vou mostrar este objecto, que me parece mais interessante do que outros; e vou-lhes explicar porquê, e a partir de que valores emito este julgamento. Será que é necessário relembrarmo-nos de um velho adágio talmúdico, segundo o qual um texto (e por extensão, qualquer outro objecto) não adquire o seu real valor senão a partir do momento em que foi sujeito a um comentário?
SG: Em Portugal, onde fazem falta mais revistas em papel consagradas à arte contemporânea, apropriámo-nos do formato digital para existir. A Artecapital existe desde há três anos… Poderemos dizer que fazemos parte de uma “alter-modernidade”? As diferentes velocidades de crescimento nos países europeus são uma das razões para que nos continuemos a sentir tão “far away so close”…
NB: A verdadeira virtude do pós-modernismo foi a de equalizar filosoficamente, e mesmo juridicamente, as diferentes versões dos espaços-tempo que compõe o nosso mundo, e do qual certas versões eram precedentemente consideradas pelo mundo modernista como simplesmente “em atraso”. A “alter-modernidade”, é a coordenação estrutural produtiva das diferentes velocidades, com a finalidade de criar novas visões do mundo, uma modernidade que seja finalmente planetária e não simplesmente pseudo-Ocidental, que seja um arquipélago e deixe de ser “continental”, no sentido em que deixe de ambicionar a totalidade.
SG: José Saramago escreveu, em 2008, um livro intitulado A Viagem do Elefante, no qual o seu protagonista paquiderme, proveniente da Índia, atravessa a Europa do século XVI. Nessa viagem “moderna” a palavra de ordem é: chegamos sempre ao sítio onde nos esperam. O que pensa desta visão da viagem? Ainda tem sentido?
NB: A errância é, antes de mais, encontrar o que não se procura. É este o verdadeiro luxo intelectual num mundo onde se fabricam dóceis consumidores a partir de perfis-tipo.
Link
ALTERMODERN – Tate Triennial 2009
Tate Britain, 4 Fevereiro – 26 Abril 2009
www.tate.org.uk/britain/exhibitions/altermodern/
Bibliografia
NICOLAS BOURRIAUD
Radicant
-Nova Iorque, Sternberg Press & Berlin (Merve Verlag), 2009.
Postproduction
-Dijon, Les presses du réel, 2004.
-Nova Iorque, Lukas & Sternberg, 2001.
Formes de vie. L’ art moderne et l’ invention de soi
-Paris, Denoël, 1999.
Esthétique relationnelle
-Dijon, Les presses du réel, 1998.