segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Novo desenho põe em xeque "potência afetiva"



Designers falam em patrimônio visual e ideia de design como expressão do tempo

Momento atual permite convivência da sintaxe modernista com projetos vintage, de retomada de marcas do século passado 



Mesmo sem saber que Lygia Pape estava por trás dos biscoitos flutuantes nas embalagens da Piraquê, várias gerações se acostumaram a ver nos mercados a serialização geométrica dos pacotes. Do mesmo jeito que a lata de sardinhas Coqueiro, desenhada em 1958, ficou mais de 40 anos em circulação.


É tempo suficiente para criar, mais do que uma identidade corporativa, uma memória afetiva desse desenho. "O que está em jogo não é tradição, e sim afeto", postou Daniela Name em seu blog, saindo em defesa das embalagens que marcaram sua infância. "Essa é a base da história e da longevidade de um produto de design."



Tanto que gente como o publicitário paulistano Eduardo Foresti guarda em casa as embalagens mais emblemáticas que encontrou pela vida, dos biscoitos Piraquê aos cosméticos Granado. "As pessoas se irritam quando muda algo com o qual existe uma relação sentimental", diz Foresti. "Um exemplo é a bala Chita, que era um macaquinho. As pessoas se ressentem dessas mudanças."


Quando a Varig decidiu substituir o desenho de um homenzinho voando pela rosa dos ventos na cauda de seus aviões, em 1962, pilotos se recusaram a voar sem o Ícaro, e a empresa foi obrigada a repintar o desenho no bico das aeronaves.
Mas pessoas também crescem, o tempo passa e marcas precisam lutar para manter o frescor. "Todas as empresas precisam se manter na concorrência, que é fortíssima", analisa o designer André Stolarski.


"O problema não é a mudança, mas como ela é feita, porque se o novo projeto perde uma característica que é distintiva em termos de mercado ou patrimônio visual, está perdendo feio, perde a potência afetiva."


Stolarski vê um retrocesso nos novos pacotes da Piraquê e da Coqueiro, mas elogia, por exemplo, as mudanças da Pepsi, que reformou há pouco sua logomarca e simplificou embalagens e identidade visual.


"Não faço parte do time que fica lamentando essas coisas", diz Chico Homem de Melo, professor de design e autor de livros-referência sobre o assunto no país. "Essa é uma visão de raiz racionalista, que vem da Bauhaus, o design que se colocava como eterno."

Longe de eterno, Homem de Melo chama o design de "expressão de seu tempo". "Essa é uma história de mudanças, não de permanências", frisa. E lembra que parte da polêmica em torno da aposentadoria de desenhos concretistas de Pape e Wollner está ancorada num momento histórico que passou.


"Esses artistas construtivos achavam que a arte industrial era a saída", diz Homem de Melo. "Então ir para o design não era sair para outra coisa, era mostrar para onde vamos."

Nessa linha, Willys de Castro, Hércules Barsotti, Waldemar Cordeiro, no Brasil, e nomes como El Lissitsky e Kurt Schwitters, no exterior, também fizeram incursões no campo do design, sujeitos à mesma passagem do tempo.


"É o curso das coisas, é natural que ideias novas tomem o lugar das antigas", diz o artista Rafael Lain, da dupla Detanico & Lain, conhecida por sua atuação também no design. "Um design feito há 50 anos responde a questões de 50 anos atrás, que não são pertinentes hoje."


E esse hoje é um terreno aberto. Convivem no design contemporâneo a sintaxe modernista de Pape, Wollner e Aloisio Magalhães e as formas ornamentadas, rococó, dizem alguns, do revival promovido por empresas como a Fiat, que voltou a usar a mesma tipografia de 1901 em sua logomarca.


"Tem um tom de humanidade, calor, que o design modernista não tem", diz Homem de Melo. "Estamos vivendo um revival, ou talvez seja só voltar a alguma coisa lá atrás e reinscrever isso na modernidade."
Design Aposentado

Embalagens clássicas de produtos saem de cena e geram debate sobre memória afetiva e patrimônio do design no país 


Diante da prateleira de um supermercado, Daniela Name levou um susto. "Foi horrível", lembra a curadora, que correu para casa e postou em seu blog que a Piraquê estava aposentando as embalagens dos biscoitos Queijinho e Presuntinho, desenhadas pela artista Lygia Pape nos anos 60. "São mudanças criminosas, assassinas", diz ela. "É muito sério."


No lugar dos arranjos em vertente construtiva dos pequenos biscoitos, projeto de Pape, está agora uma disposição mais convencional, com uma grande tarja com o nome do produto quebrando o desenho. "Nem por hipnose alguém me convenceria de que essa coisa horrorosa é mais eficiente", esbravejou Name, na web.


É uma reação parecida com a do designer Alexandre Wol- lner, que viu sua embalagem clássica das sardinhas Coqueiro dar lugar a um design brilhante e modernoso, que rompe com os traços minimalistas de seu desenho, pondo no lugar uma linguagem mais figurativa.


"É uma esculhambação total da Coqueiro", diz Wollner. "Não pode trocar um desenho por uma coisa mais bonitinha."


Bonitinhas ou assassinas, marcas mudam. E geram um debate entre artistas e designers sobre o que é patrimônio visual e como lidar com o que já foi ícone do design brasileiro em meio às mudanças que seguem o ritmo do mercado.


Se por um lado saem de cena os últimos exemplos dessa corrente modernista, por outro empresas retomam logomarcas ornamentadas do passado.

(SILAS MARTÍ da Folha de S. Paulo)