sábado, 5 de dezembro de 2009

DEBATE


fonte: Zero hora

Arte de hoje

Cultura propôs as mesmas cinco perguntas a quatro intelectuais que têm discutido em seus trabalhos as singularidades da arte e da estética no tempo presente

1 Neste momento, reaparece em Porto Alegre o discurso que defende que a arte contemporânea seja examinada segundo critérios tradicionais, incluindo, por exemplo, a habilidade do fazer e a busca pelo belo. Em que medida, tais critérios podem ser empregados nos dias de hoje?

2 Alguns comentadores alegam que a arte contemporânea seria um embuste, uma empulhação. Segundo eles, toda a produção do presente não passaria de uma astuciosa invenção do mercado com a conivência de críticos e teóricos. O que lhe parece essa ideia?

3 Esse mesmo discurso afirma que a arte de hoje seria a arte do vale-tudo. Vale tudo na arte contemporânea?

4 No extremo oposto, há aqueles que acabam assumindo uma defesa incondicional da arte contemporânea, como se toda ela fosse exemplar. Há arte boa e arte ruim no contexto contemporâneo?

5 É fato que uma parte considerável do público se sente incomodada com a arte de hoje. São pessoas que vão, por exemplo, às grandes exposições ou às Bienais e saem de lá dizendo que “não entenderam nada”. O senhor já se sentiu assim em relação à arte do presente, “sem entender”? Qual foi sua reação?


JACQUES LEENHARDT

Presidente de honra da Associação Internacional de Críticos de Arte, a Aica, o francês Jacques Leenhardt, 67 anos, é diretor de Estudos da prestigiada École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, de Paris. Doutor pela Universidade de Paris X (Nanterre), sob orientação de Roland Barthes, tem estudos publicados nas áreas de literatura, sociologia e artes visuais.

“É um erro bem ingênuo, mas uma ilusão bem comum, acreditar que espontaneamente, sem preparação e sem reflexão, vamos compreender o trabalho dos cientistas ou dos artistas”

1.Por que utilizar critérios do passado para compreender nosso mundo contemporâneo? A arte não avança com a mesma rapidez das comunicações, mas a arte é o lugar onde se cristalizam as experiências que fincam suas raízes em nosso mundo técnico, político e, mais genericamente, em nosso mundo humano contemporâneo. Os artistas procuram, tateando, criar obras que exprimam sua própria relação com este mundo, extraindo por vezes a beleza mas, mais frequentemente, o sentido, que é o que nós percebemos como o mais radicalmente ausente deste mundo.

2.Como na política, há fraude na arte. O mercado de arte não é mais transparente e democrático do que o campo da política. Em geral, não se fala senão do grande mercado especulativo internacional, mas há outros, mais discretos, que correspondem ao gosto de muita gente diferente. É evidente que a crítica está ausente dos grandes meios de comunicação, e isso não facilita a tarefa de se perceber a diversidade das produções artísticas. A imprensa ama o sensacional. Somos todos responsáveis por isso. Primeiro, fala-se dos grandes prêmios, das grandes exposições, dos grandes escândalos! Mas nas exposições pode-se constatar a pluralidade das criações, cada um pode experimentar a diversidade da arte. O importante é que cada um tente se confrontar com uma experiência estética que o enriqueça, uma experiência que proponha algo de novo em relação ao que essa pessoa já conhecia e já apreciava. Isso pode ocorrer tanto diante de mestres do passado quanto diante de artistas contemporâneos. É uma questão de disponibilidade mental do visitante, e é algo que coloca em jogo o seu repertório. Quanto maior nosso repertório, mais capazes nós seremos de aproveitar uma ampla experiência estética. A compreensão do mundo, e da arte em particular, requer um exercício constante. É um erro bem ingênuo, mas uma ilusão bem comum, acreditar que, espontaneamente, sem preparação e sem reflexão, vamos compreender o trabalho dos cientistas ou dos artistas.

3. O artista tem todas as possibilidades abertas diante dele. Ele escolhe e tenta produzir sentido. Nem tudo o que ele faz é sempre compreensível ou pertinente. O tempo e a história selecionam e sempre vão selecionar o que fará sentido para as gerações futuras. Evidentemente, muitas obras serão esquecidas, neste campo como em outros.

4. É claro! Há aqueles que conseguem passar o que sentem e aqueles que não conseguem. Há aqueles que ficam à margem da difícil experiência da arte e não fazem senão produzir objetos, os quais eles tomam por arte, mas que não são senão “produtos”, destinados a seduzir nosso gosto pela repetição. A repetição é agradável, mas é apenas uma pequena parte de nossa capacidade de experiência estética.

5. É difícil ser contemporâneo de um mundo em plena transformação. Somos, enquanto seres humanos, ligados tanto às tradições quanto ao futuro que se abre diante de nós, o qual aprendemos a compreender lentamente e com dificuldade. Isso explica o descompasso que seguidamente sentimos diante de muitos aspectos do mundo contemporâneo – e não apenas diante da arte. O esporte é fácil de compreender porque ele se repete a cada semana, idêntico a si mesmo. Todo mundo ama o esporte, que oferece, ano após ano, a mesma dramaturgia. A arte tenta tornar sensíveis certas modificações de nossa vida e de nossa sensibilidade coletiva. Nossa sensibilidade muda com uma velocidade vertiginosa, algo que dificilmente poderíamos acompanhar por nós mesmos. A arte é uma experiência que se situa nas margens de nossa compreensão. Por isso, ela frequentemente corre o risco de não compreender e de não ser compreendida.

ARTHUR DANTO

Filósofo norte-americano, professor emérito da Columbia University, em Nova York, Arthur Danto, 85 anos, é autor de uma polêmica tese sobre o fim da arte. Ancorado em Hegel, ele afirma que, na arte contemporânea, haveria uma consciência da natureza filosófica da arte. Essa tese está exposta nos livros A Transfiguração do Lugar-Comum e, sobretudo, em Após o Fim da Arte, ambos disponíveis em português. Desde 1984, Danto atua como crítico de arte para a revista The Nation.

“Se alguém disser que não apreendeu nada com uma exposição, então o problema deve estar com a pessoa. Provavelmente, ela não se esforçou o suficiente para tirar algum proveito”

1. Não há critérios canônicos que se apliquem à arte contemporânea. Ao visitar uma exposição de arte, devemos nos preparar para achar nosso próprio caminho de entendimento. Geralmente há textos nas paredes, catálogos, folhetos, que podem ajudar. Devemos passar certo tempo tentando entender o que a obra significa. Uma análise crítica, admitamos, leva tempo. Somos sempre livres para perguntar se aquilo valeu a pena ser feito e se aprendemos algo. O visitante certamente necessita fazer um julgamento esclarecedor a respeito da obra. Se não, não há motivo em visitar uma exposição.

2. Se alguém acredita que toda arte contemporânea é um engodo, esse alguém deveria ser sábio e evitar exposições de arte. Eu passo um bom tempo com arte, como crítico, mas também como simples apreciador de arte. Não tenho essa impressão de que a arte contemporânea seja uma empulhação. Conheço muitos artistas, alguns até bem famosos. Nunca tive evidências de que eles estivessem enganando alguém com sua arte. Estou mais convencido de que os comentadores que você menciona sejam mais enganadores do que os artistas. No século 19, houve um julgamento famoso, no qual o pintor americano James McNeil Whistler, processou de forma bem-sucedida o crítico John Ruskin, por esse ter dito que sua pintura era um engodo. Ruskin perdeu a disputa judicial e caiu em desgraça. Acho que isso é algo que poderia acontecer hoje em dia se um crítico se comportasse da mesma forma que ele.

3. Alguém já disse que vale tudo na guerra e no amor. Nunca vi nada nesse sentido em relação à arte. Geralmente, há um motivo pelo qual o artista fez o que fez. Ao se apreciar uma obra, tem-se que tentar entender os motivos que explicam por que a obra é o que é. Isso é chamado de crítica. Crítica seria extremamente fácil de fazer se disséssemos que tudo vale.

4. Sim. Há arte boa e arte ruim, assim como há gente boa e gente ruim.

5. Um dos problemas com Bienais é que há muita arte para ser vista e não há tempo suficiente. Isso pode ser um bocado frustrante. Uma alternativa é tentar fazer uma pesquisa prévia. Descobrir o que seria melhor de olhar, lendo resenhas e depois tentando planejar a visita. Sempre se pode ficar desapontado. Mas se alguém disser que não apreendeu nada com uma exposição, então o problema deve estar com a pessoa. Provavelmente, ela não se esforçou o suficiente para tirar algum proveito. Imagine um jogo complicado, como beisebol. A não ser que você conheça o jogo, você não será capaz de assistir e tirar algum proveito dele.

FERNANDO COCCHIARALE

Artista, professor e crítico de arte, Fernando Cocchiarale é curador do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Em Porto Alegre, ele fez a curadoria da exposição É Hoje, que apresentou no Santander Cultural a coleção Assis Chateaubriand (2006), e foi um dos curadores da retrospectiva de Vera Chaves, também no Santander Cultural (2007). É autor do livro Quem Tem Medo da Arte Contemporânea? (2007).

“A arte contemplativa, criada por artistas individuais dotados de habilidade e gênio, é somente uma construção histórica europeia que começa na Renascença e se consolida no final do século 18.”

1. A arte não tem uma única natureza. Se considerarmos, por exemplo, o que se passou no Ocidente, desde a Grécia clássica até o mundo moderno e contemporâneo, vemos que ao longo desses 2.400 anos se sucederam pelo menos três grandes regimes ou funções do que chamamos habitualmente de arte. No primeiro e mais duradouro deles, não havia a separação entre ofícios, entre arte e artesanato, mas entre a natureza e sua transformação pelo fazer. Sua função era sobretudo religiosa. A arte contemplativa, objeto da estética, criada por artistas individuais dotados de habilidade e gênio, tida como canônica entre desinformados e conservadores, é somente uma construção histórica europeia que começa na Renascença e se consolida no final do século 18, quando surgiram as primeiras disciplinas voltadas especificamente para o estudo e o conhecimento da arte (estética, História da Arte e crítica de arte). De seus desdobramentos na visualidade moderna, até a crise deflagrada pela II Guerra, a arte parecia afirmar, ainda que sob transformações vertiginosas, sua função estético-contemplativa como eterna e única, embora tivesse apenas cerca de 400 anos. É, portanto, impossível avaliar as novas funções da arte a partir de teorias que emprestavam sentido à arte formal e estética do passado histórico que antecedeu a produção contemporânea, incapazes de outra coisa que não negá-la e destruí-la.

2. Quando teria ocorrido essa astuciosa invenção? Como ela poderia ter cooptado artistas, críticos, parte do público e teóricos atuantes em diversos campos, de diversos países, sem que existam quaisquer vestígios dessa ardilosa conspiração? Quando e onde eles se encontraram secretamente sem que ninguém o tivesse sabido? Finalmente qual teria sido a vantagem de substituir a Arte Bela, consolidada e vendável, por outra incompreensível para o espectador médio? Não é mais produtivo pensar que mudanças históricas profundas, como a crise do projeto iluminista do século 18 (no qual a arte contemplativa floresceu como questão estética) e o desencanto decorrente da guerra operaram transformações profundas no cotidiano das décadas seguintes e, por conseguinte, na esfera da arte e sua função?

3. Embora eu não concorde com essa ideia, que considero preconceituosa, já que vale tudo, aqui, significa qualquer coisa, desde que não tenha qualidade, eu poderia dizer quer ela se ancora em características que se manifestam não somente no campo da arte, mas no conjunto de nossa vida social, teórico-científica e cultural há uns 40 anos. A principal delas tem a ver com a impossibilidade de produzirmos categorias e de estabelecer identidades fixas e excludentes. Dela, decorre a pluralidade que hoje predomina em todas as esferas da vida humana, onde antes reinava uma unidade passível de fundar critérios unívocos e consequentemente a produção de valores então tidos como eternos e atemporais.

4. Claro que há arte boa e ruim no contexto contemporâneo, assim como havia no contexto moderno e clássico.

5. Creio que isso se deve, ao menos em parte, à falta de informação e à falta de uma rotina cultural que comece desde a infância tanto por estímulo familiar, quanto pela escola e posteriormente até pela universidade. Faltam galerias de arte, museus decentes, livrarias, revistas especializadas. Infelizmente a formação cultural do brasileiro médio é sofrível. Nesse contexto podemos tomar esse incômodo como desconhecimento e não como uma rejeição crítica.

MÔNICA ZIELINSKY

Professora no Instituto de Artes da UFRGS, é responsável pela catalogação da obra de Iberê Camargo. Em sua tese de doutorado, defendida em 1998, na Universidade de Paris I (Sorbonne), sob orientação de Marc Jimenez, ela discutia a crítica de arte contemporânea no Brasil. Organizou o livro Fronteiras: Arte, Críticas e Outros Ensaios (2003), sobre as querelas e os impasses da estética no mundo de hoje.

“Não basta proliferarem as opiniões, essas serão sempre subjetivas e pessoais; afloram fáceis, como impressões espontâneas sobre os fatos”

1. Para responder a esta pergunta, basta olhar com atenção para se constatar que a própria arte contemporânea recusa intencionalmente esses critérios. Assim, já em um primeiro foco, pode-se pensar que artesania e beleza não são mais considerados critérios fundamentais da arte (mesmo que ocasionalmente possam ser encontradas em alguns trabalhos). Este fato não é nada recente. Nos primeiros anos do século 20, as obras de Duchamp já haviam rejeitado esses critérios e abalaram fortemente a noção de arte. Por uma ação perturbadora, ao expor seus readymades, Duchamp colocou em crise o próprio sistema de arte, a experiência formal das obras, o valor da elaboração técnica dos trabalhos, além dos critérios de gosto instituídos, as relações entre o original e a reprodução das obras. Enfim, subvertendo a noção tradicional de arte, é inegável que sua postura tenha se tornado paradigmática quando se fala em arte contemporânea, em especial a partir de 1960, quando se acirraram as discussões sobre o artístico. Assim, o reconhecimento dessas obras como sendo de “arte contemporânea” não diz mais respeito especificamente às suas qualidades físicas ou ao prazer sensível, mesmo que estes possam estar presentes em algumas obras. Por outro lado, a arte ganha sobejamemente em outros âmbitos e em novas contribuições, e penso perder-se muitíssimo se não estivermos abertos a usufruir dos outros valiosos vértices para os quais esta arte aponta – às ideias que a constituem, ao que ela enuncia de forma multifocal sobre a vida, o homem, as culturas e a história dos nossos tempos. Também sobre a própria arte em um ato autorreflexivo, e sobre seu funcionamento como arte em meio a essa incerta trama artística que se alastra pelo mundo.

2. Não posso concordar que toda arte contemporânea seja embuste, empulhação ou uma astuciosa invenção do mercado. As obras de arte possuem a especificidade de devolver ao mundo, das mais variadas formas, a própria percepção sobre este. E nesse processo, os artistas optam, em suas práticas hoje, muitas vezes por caminhos muito diversos, altamente experimentais, plurais e interrogativos sobre sua circunscrição artística, trazendo com isso o alargamento dos limites da arte. O mercado é parte do sistema artístico e seria ingenuidade nossa ver o afastamento da criação dos artistas de um mercado que a faz circular, expor e mesmo ampliar, mesmo que inseridos em interesses contraditórios.

3. Não vale tudo na arte contemporânea. Mas sabe-se também que ela vive a crise de sua legitimação, um problema encontrado nos discursos elaborados sobre ela. Esses não são claros e explícitos em relação às distinções entre as obras, ao questionarem as novas configurações e limites da própria arte. Esse fato teve como uma de suas causas a dissolução das certezas e critérios explícitos universais no embate com as obras, mas esse é um fato que ao mesmo tempo estimula a reflexão sobre a arte e o aguçamento de sua percepção. O princípio de discriminação das obras hoje é outro; ele transforma-se e vê-se carente de novas abordagens, conhecimentos e explicitações. Por isso, possivelmente seja essa uma das razões do surgimento de confusões nas abordagens críticas da arte e em seu entendimento pelo público, diante das outras perspectivas que as práticas dos artistas apontam atualmente.

4. É claro que há distinções de qualidade entre as obras de arte contemporânea, disso jamais se poderia duvidar. No entanto percebe-se a ausência de manifestações mais explícitas e fundamentadas sobre a arte, apoiadas em leituras históricas e em conhecimentos artísticos. Geralmente, tudo se passa no mais absoluto silêncio, sem as saudáveis trocas ponderadas com conhecimento. Não basta proliferarem as opiniões, essas serão sempre subjetivas e pessoais; afloram fáceis, como impressões espontâneas sobre os fatos. Observa-se que alguns artistas trabalham com resultados complexos, os que apontam a diferentes experiências; remetem a muitos ângulos de ideias e abordagens, em continuidade de suas pesquisas e explorações de suas poéticas. Outros optam pela obviedade, pelos resultados fáceis ou descritivos do mundo. São escolhas, mas penso ser de extrema importância o incentivo ao exercício aprofundado e crítico da arte por parte da recepção, a ser desenvolvido com profundidade, sistematização e informações atualizadas na formação dos diferentes públicos.

5. Sim, já me senti assim, quem não? Mas lembro que, sempre que possível, busquei recursos para este entendimento: retornei às exposições e revi o já visto. Descobri dados históricos sobre as obras ou tipo de produção, sobre os artistas ou grupos, sobre suas inserções no meio artístico, seu pensamento artístico e suas relações com outros artistas, sobre o que existe de materiais publicados, em especial sobre seus depoimentos. Sabe-se que a arte contemporânea é fundamentalmente centrada nos aspectos cognitivos que a constituem e que exigem, por sua vez, informações específicas para se efetivar uma experiência mais rica da arte. No Renascimento, a arte já era considerada um campo de saber e, como tal, requer até hoje que se enriqueça a reflexão sobre ela, como qualquer outra área que exige conhecimento.