Silas Marti e Mario Gioia da Folha de S. Paulo
Uma paisagem noturna, onde parecem espreitar Laura Palmer, Leland e Bob, em algum ponto longínquo de "Twin Peaks". Mas a fotografia, na verdade, foi feita em Ibiúna, interior de São Paulo, pela jovem artista Sofia Borges, 25, e está no centro de sua primeira individual numa galeria, a Virgilio.
O cinema é forte influência na obra da artista, em especial a atmosfera estranha dos filmes de David Lynch, estilo que vem arrancando elogios à sua obra de uma série de críticos e curadores, além de garantir sua participação em coletivas importantes no circuito.
Depois de expor no "Rumos Artes Visuais" deste ano, tradicional seleção de jovens artistas, e de mostras em museus no ano passado, Sofia se prepara agora para mostrar suas obras em Recife, São Paulo e Rio. "Lynch é o cineasta que mais tenho visto, de forma alucinada", diz Sofia. "A exposição foi contaminada pela obra dele."
Foto feita em Ibiúna (SP) por Sofia Borges; artista aponta influência do cineasta David Lynch em seu trabalho
Mais do que a atmosfera soturno-absurda de Lynch, são tramas que se esfacelam no tempo. Sofia retrata a mesma paisagem em momentos distintos, chegando a juntar 20 vistas do mesmo espaço num único fotograma. O resultado é um frame saturado de não acontecimentos: em vez do instante decisivo, o hiato perdido entre a causa e a consequência.
"Eu fragmento a fotografia, pego vários tempos de exposição, de várias temperaturas de cor e vou montando uma realidade", resume Sofia, numa operação que aproxima sua obra fotográfica à pintura. Ela cita o barroco Nicolas Poussin (1594-1665) como uma de suas principais influências, deixando explícita a manipulação de elementos de luz e composição nas suas fotos digitais.
É isso que "seduz e intriga o olhar", nas palavras de João Bandeira, 47, curador do Centro Universitário Maria Antonia, onde Sofia expôs no ano passado. "Lembra um pouco a pintura flamenga, holandesa, mas é estranho porque ela mexe na luminosidade e isso concentra ali pontos diferentes."
O crítico Paulo Sergio Duarte, 62, vê nas fotos de Sofia um "lado pictórico que não tem nada a ver com pincel e tintas", ou seja, uma pintura que já não depende de seu suporte clássico, migrou para outras linguagens.
Da pintura à foto digital
Sofia é da geração que vem desafiando a pintura a partir dela mesma. Da mesma forma que Poussin, Vermeer e Cézanne pinçavam na realidade pontos díspares e fixavam todos no mesmo plano, a foto digital se presta à fabricação do real.
"Queria imagens escorregadias, afrouxadas, destituir a minha foto de uma relação imediata e colada com o real", resume. "Há uma falta de precisão nessas imagens, estão à beira do precipício. São quase espetaculares demais, fantasiosas demais, absurdas demais." Quase, mas não chegam a tanto. Sofia tem os pés no chão.
Confessa que fica na antessala do absurdo para causar um estranhamento limítrofe, ponto morto entre a abstração total e o retrato banal do cotidiano. "São pequenos romances, narrativas", diz o crítico Tadeu Chiarelli, 52. "O trabalho dela me pega com muita força."
Na primeira série de fotos que fez, Sofia aparece numa cozinha, sentada na cama, descascando maçãs. O prosaico se distorcia num limbo cronológico e luminoso. Mas o fato de serem autorretratos acabava dando peso à personagem e ofuscando a ideia de anonimato.
Em sua nova série, Sofia registra paisagens estranhas, com figuras enigmáticas e que pouco se revelam. "Associavam muito os autorretratos à questão da mulher, questões políticas, o intimismo, mas não era isso, só passava por isso", diz. "Mas vi que não precisava mais passar por mim, fui pensando que o sujeito pode se relacionar de outra forma com o espaço, que ambos se contaminam."
SOFIA BORGES
Quando: de seg. a sex., das 10h às 19h, e sáb., das 10h às 17h; até 15/7
Onde: galeria Virgilio (r. Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 426, tel. 3062-9446)
Quanto: entrada franca
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