domingo, 31 de maio de 2009

ARTIGO


Desde 2008 este Blog vem acompanhando os desdobramentos da Bienal do Vazio que culminou numa crise política ameaçando as próximas edições da mostra e finalmente a eleição de Heitor Martins para presidente da instituição que mesmo com muitas desconfianças dá um novo alento ao futuro da Bienal SP. Abaixo um artigo bastante interessante(publicado na Folha de S. Paulo do dia 31/05) analisando os papéis da Bienal por Terixeira Coelho.

A Bienal e o sistema da arte

TEIXEIRA COELHO

A Bienal continua vendo a si mesma como se estivesse nos anos 50, ignorando todo o sistema que ajudou a criar


"NOSSAS ARTES foram instituídas, e seus tipos e usos fixados, num momento bem diferente do nosso, por pessoas cujo poder de ação sobre as coisas era insignificante perto do que temos hoje. Mas o surpreendente crescimento de nossos meios, a maleabilidade e precisão que alcançam, as ideias e os hábitos que introduzem nos garantem mudanças próximas e profundas na antiga indústria do Belo."
Citei num artigo de 2008 sobre a Bienal essas mesmas palavras de Paul Valéry tiradas de "A Conquista da Ubiquidade" (1934) e às quais Walter Benjamin recorreu em 1939 na sua última versão de "A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica". Elas continuam válidas como ponto de reflexão sobre "a crise da Bienal de São Paulo".
Pensando com Valéry, a Bienal de São Paulo surgiu num momento bem diferente do atual. Não havia então o sistema da arte que hoje existe. Quando a Bienal abriu as portas em 1951, não só o mundo tinha apenas duas ou três bienais como, no Brasil, Masp, MAM e Pinacoteca mal engatinhavam e MAC-USP e Lasar Segall não eram sequer projetos.
Não havia mercado da arte à altura do nome, nem institutos culturais bancados por empresas. Havia arte e crítica de arte, mas não um sistema da arte, algo que a abertura da própria Bienal viria estimular.
A Bienal era o clínico geral da arte do momento. Num ambiente sem especialistas em número suficiente para um país no entanto nada pequeno, a Bienal era ao mesmo tempo o barco, seus passageiros, sua carga, o farol e o porto. O poder das pessoas disponíveis para o que então se fazia era grande no seu contexto, mas, como diz Valéry, "insignificante perto do que temos hoje".
Hoje esse sistema da arte existe e começa por um sistema de museus que cumpre em larga medida a função que antes era da Bienal. Esse sistema exibe a arte feita aqui e a arte do mundo. Ainda não há no país um representante do museu mundial que existe no hemisfério Norte. Mas o sistema de museus implantado faz em larga medida aquilo que a Bienal fazia no início -e mesmo o que ela vem fazendo nos últimos anos.
Esse sistema requer, para funcionar, curadores, historiadores, conservadores, críticos (e público, por certo). Tudo isso exige cursos, universidades, pesquisa, teses, livros, intercâmbio, redes pessoais e institucionais. Sem falar em secretarias, fundações e ministérios.
A capacidade da Bienal à época de sua fundação era "insignificante perto do que temos hoje". No entanto, ela continua vendo a si mesma e organizando a si mesma como se estivesse nos anos 50, ignorando todo o sistema que ajudou a criar.
Da esmagadora maioria de seus membros não se pode dizer que representem de fato esse quadro, que é um quadro de especialistas. O sistema da arte requer financistas, experts em comunicação e captação, ao lado de instituições de arte e especialistas da arte. Estes são minúscula minoria na Bienal. (E não é indiscutível que os demais estejam nela bem representados.) E da presença das instituições de arte na Bienal, nada.
A questão da Bienal é institucional. Mas continua sendo tratada como questão pessoal, uma questão de indivíduos. As pessoas são decisivas, mas, sem a instituição, movem menos do que poderiam. Se hoje existe um sistema da arte no país, e de modo particular um sistema de museus, não é compreensível que esse sistema não esteja institucionalmente representado na Bienal. Isso torna a Bienal institucionalmente fraca. Injeções de dinheiro não alterarão o quadro.
Fala-se agora em reforma do Conselho da Bienal. Se essa reforma não se abrir para o sistema institucional da arte no país, não avançará nada. É esse sistema que fala pela arte no país, é esse sistema que diz a arte no país. Sem ele, a Bienal é muda. E não muda. A Bienal é um patrimônio desse sistema, que ela insiste em ignorar. Sua natureza e suas prerrogativas continuam a fazer sentido, no sistema da arte. Mas, para que ela esteja à altura das "mudanças próximas e profundas na antiga indústria do Belo", precisa parar de pensar em pessoas e pensar em instituições, aproximar-se delas, incorporá-las. Não é a panaceia universal. Mas é uma proposta à altura da época.

JOSÉ TEIXEIRA COELHO NETTO, 65, é professor titular aposentado da ECA-USP (Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Pulo), crítico e curador do Masp (Museu de Arte de São Paulo). É autor de "Dicionário Crítico de Política Cultural", entre outras obras.

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