terça-feira, 25 de agosto de 2009

Filme traça painel crítico e utópico sobre mulheres no Irã




por Silas Marti
da Folha de S.Paulo


É árido o terreno de Shirin Neshat. Mulher, artista, iraniana, ela equilibra gênero, origem e profissão num vácuo.

Acostumada a gritar para ninguém ouvir, Neshat acaba de trocar as artes visuais pelo cinema, algo que compara a trocar a poesia pela prosa. "Sou muito lenta, hipnótica", resume em entrevista à Folha. "Mas sei que se continuar assim, vou perder meu público."

Há dez anos, Neshat venceu o Leão de Ouro na Bienal de Veneza por sua obra artística. Ela volta à cidade agora para competir por outro Leão, desta vez no Festival de Cinema, que começa no mês que vem.

Mas não são tão distintos os projetos. Na esteira do estardalhaço causado pela também iraniana Marjane Satrapi e seu cartum-manifesto "Persépolis", Neshat deve ganhar projeção mundial com "Women Without Men", ou mulheres sem homens, filme que junta as mesmas personagens que povoam suas videoinstalações.

São cinco mulheres: a submissa, a solitária, a devassa, a revolucionária e a artista. Migraram do romance da iraniana Shahrnush Parsipur, escrito há 20 anos, para as instalações de Neshat --e agora vão ao cinema, num painel crítico e utópico da condição feminina no Irã.

Neshat tem um pouco de cada uma delas. Diz ser complexada com o próprio corpo, que vê como um problema no país. Também se espelha na revolucionária e acredita, como a artista, que a válvula de escape numa sociedade repressora é mesmo a fantasia, utopias forjadas a qualquer custo.

"Essa é a forma mais universal de traduzir certas opiniões", diz Neshat. "Artistas podem ser grandes comunicadores da tragédia humana sem pregar ideologia ou propaganda."

No filme, Teerã vive o golpe de Estado que derrubou o premiê Mohammed Mossadegh em 1953, e as mulheres de Neshat se refugiam num jardim encantado --a violência diluída em tintas fantásticas.

Não que a mulher precise de uma redoma para viver, mesmo no Irã. "Não sou uma feminista de verdade", diz Neshat. "A ideia de utopia transcende gênero e nacionalidade."

Neshat planta as flores de seu jardim acreditando numa "necessidade de refúgio, exílio" universal. "Homens e mulheres fogem em busca de segurança, numa questão existencial", diz. "É possível abandonar esse mundo para encarar a própria condição humana."

Embora estenda a questão para abarcar também os homens, Neshat fez toda a sua obra girar em torno de ser mulher. São opostos absolutos que dão carga aos trabalhos. Numa videoinstalação dos anos 90, pôs lado a lado um homem e uma mulher. Ele canta para um teatro lotado; ela grita, chora, urra diante da plateia vazia.

Se a raiz imediata da obra é a proibição que mulheres cantem em público no Irã, Neshat extrai algo maior do contexto. Questiona o que deve criar uma artista mulher diante de um público ausente, como pode soar uma canção no vácuo.

"Não sou uma mulher obcecada por mulheres, só entendo a cabeça delas e tento revelar por elas a complexidade da sociedade, da religião", diz. "Mulheres no Irã são fascinantes, pela forma que confrontam a autoridade, a censura, mas não reduzo meu trabalho a isso."

Melancolia nostálgica

Mais do que isso, Neshat carrega nas imagens e metáforas para narrar seus dramas femininos. "É muito visual, ponho muita ênfase no poder das imagens", diz a artista. "Faço algo minimalista e metafórico."

Nessa proposta, Neshat não olha para nomes do cinema iraniano. Descarta Abbas Kiarostami, diretor mais conhecido de seu país, como "convencional", mesmo com seu ritmo arrastado e longuíssimos planos estáticos. Ela diz buscar a melancolia nostálgica de cineastas do Leste Europeu: Andrei Tarkovsky e Krzysztof Kieslowski.

"Kieslowski é poderosíssimo do ponto de vista moral, visual nem tanto", diz, sobre o polonês. "Tarkovsky tem um visual profundo. É muito sombrio, talvez porque venha de um país comunista", diz, sobre o russo.

Ela também não se desliga da política. Sabe que fez um dos poucos filmes que discute de forma aberta o apoio de britânicos e norte-americanos ao golpe de Estado que instaurou um regime totalitário no Irã, o que chama de momento "monumental" na história do país.

Não difere muito dos episódios de dois meses atrás, quando o presidente ultraconservador Mahmoud Ahmadinejad foi reeleito, desencadeando ondas de protestos violentos.

"Há uma ressonância incrível entre as imagens de 1953 e as de hoje", diz ela. "As pessoas saíram às ruas então pedindo o mesmo que querem agora. É um sentimento de traição."

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