A mesma onda proibitiva que apaga grafites não atinge o vale-tudo das leis de zoneamento
por Rodrigo Andrade
O episódio recente em que a prefeitura de São Paulo apagou os grafites e pichações dos muros da Avenida 23 de Maio, pintando-os de cinza, revela a tendência maníaca por ordem que caracteriza a gestão Gilberto Kassab. Tendência que resulta mais de moralismo do que de inteligência. É a mesma tendência que recentemente espalhou nas ruas um monte de ilhas e/ou blocos de concreto que "disciplinam" os cruzamentos, estreitando as passagens e obrigando os motoristas a seguir e dobrar as esquinas da "maneira correta", dificultando o fluxo do tráfego em nome da ordem e dos bons costumes no trânsito e de uma aparência de cidade bem cuidada. Pode ser inteligente em termos eleitorais, mas não como solução prática, pois além de atrapalhar, o custo dessas ilhas poderia ser aplicado, por exemplo, na limpeza da cidade, que está longe de ser exemplar.
O prefeito Kassab notabiliza-se por investir grandes esforços em ações com a aparência da cidade. A lei que removeu as propagandas, placas e luminosos das paredes, fachadas de lojas, bares etc. teve um enorme impacto na cidade e deu muitos pontos ao prefeito. O impacto foi positivo, pois a cidade recuperou os contornos de uma fisionomia que estavam ocultos, soterrados por pesado lixo visual. Mas também trouxe perdas, já que privar São Paulo do brilho colorido dos neons, típica de grandes centros urbanos, é um tanto cruel.
Basta pensar na Times Square em Nova York, ou Piccadily Circus em Londres, ou Tokio. Com a lei, uma visualidade muito característica nossa se perdeu. É o caso da popular loja de sapatos Zapata, na Duque de Caxias, que tinha um imenso luminoso de neon com letras gigantes sobre uma fachada de perfilados de alumínio tão típica nossa. A retirada trouxe à luz a arquitetura do prédio (sem graça, diga-se) e um silêncio visual confortável, mas empobreceu e entristeceu aquela esquina. Talvez a lei devesse ser flexível, e permitir os neons em certos lugares (como em Londres e Nova Yorque, aliás). Acontece que aqui as leis são aplicadas sem bom senso. Creio se tratar de uma dificuldade em viver com regras, sem que para isso seja necessária a proibição total. É a proibição ou o vale-tudo.
Vivemos uma onda proibitiva sem precedentes em São Paulo. Só que essas proibições não atingem o vale-tudo das leis de zoneamento, uma questão crucial, e enquanto a prefeitura pinta de cinza muros com grafites ou constrói irritantes ilhotas nos cruzamentos, bairros como a Vila Romana, onde moro, estão sendo completamente transfigurados pela voracidade imobiliária, com incessantes construções de prédios de apartamentos que em pouco tempo tornarão este simpático bairro num inferno sem sol, sem gente andando pelas ruas - só carros - de trânsito pesado sem escoamento possível, dificuldade para estacionar e medo da violência. Para impedir esse verdadeiro crime urbano bastaria que o bom senso regulasse o crescimento da cidade, estipulando regras de construção adequadas (determinando, por exemplo, a altura máxima dos edifícios) e porcentagens razoáveis de reocupação, em vez da proibição pura e simples.
Quanto aos grafiteiros e pichadores, no ano passado houve dois episódios envolvendo ações coletivas que merecem consideração. Um na escola de Belas Artes e outro na Bienal. Em ambos os casos a ação foi violenta, truculenta e oportunista, explorando o evento com o simples propósito de autopromoção mediante argumentos capengas, se justificando com pseudo-conceitos como "questionamento dos limites da arte" e "liberdade de expressão", supostamente pertinentes numa discussão e num espaço "de arte". E a suposta posição de "vítimas do sistema" caía no ridículo do jogo de cartas marcadas da ação, da esperada repressão e a consequente repercussão na mídia (e o pior é que a estúpida e absurda prisão de uma pichadora dava consistência a essa posição de vítima). Essas ações deturpavam o próprio sentido das pichações como intervenções urbanas.
Muito diferente é ver a lateral cega de um prédio novinho, branquinho, marcado com aquela curiosa tipografia das pichações. Vandalismo, sem dúvida, mas ali eu vejo também um caráter subversivo divertido, manifestação de uma cultura urbana adolescente genuína e espontânea. Algumas são verdadeiras proezas. Devem ser naturalmente proibidas, mas já ouvi que, para os pichadores, sem a adrenalina proporcionada pela proibição não teria graça. Mas no caso dos belos grafites nos muros da 23 de Maio - uma via expressa árida - francamente, ali me parece o lugar mais adequado possível para eles e não há razão para proibi-los.
Mas Kassab viu uma oportunidade de empreender sua cruzada cinzenta. Cruzada que também se manifesta nas obras das calçadas da Paulista, onde mais de cem árvores foram simplesmente retiradas! Será que é para não precisar varrer as folhas secas que "sujam" as calçadas? Falta massa cinzenta para esses amantes do cinza que tem em Kassab um fiel representante. Viva os grafites, viva os neons, viva Zapata!
*Rodrigo Andrade é artista plástico
O prefeito Kassab notabiliza-se por investir grandes esforços em ações com a aparência da cidade. A lei que removeu as propagandas, placas e luminosos das paredes, fachadas de lojas, bares etc. teve um enorme impacto na cidade e deu muitos pontos ao prefeito. O impacto foi positivo, pois a cidade recuperou os contornos de uma fisionomia que estavam ocultos, soterrados por pesado lixo visual. Mas também trouxe perdas, já que privar São Paulo do brilho colorido dos neons, típica de grandes centros urbanos, é um tanto cruel.
Basta pensar na Times Square em Nova York, ou Piccadily Circus em Londres, ou Tokio. Com a lei, uma visualidade muito característica nossa se perdeu. É o caso da popular loja de sapatos Zapata, na Duque de Caxias, que tinha um imenso luminoso de neon com letras gigantes sobre uma fachada de perfilados de alumínio tão típica nossa. A retirada trouxe à luz a arquitetura do prédio (sem graça, diga-se) e um silêncio visual confortável, mas empobreceu e entristeceu aquela esquina. Talvez a lei devesse ser flexível, e permitir os neons em certos lugares (como em Londres e Nova Yorque, aliás). Acontece que aqui as leis são aplicadas sem bom senso. Creio se tratar de uma dificuldade em viver com regras, sem que para isso seja necessária a proibição total. É a proibição ou o vale-tudo.
Vivemos uma onda proibitiva sem precedentes em São Paulo. Só que essas proibições não atingem o vale-tudo das leis de zoneamento, uma questão crucial, e enquanto a prefeitura pinta de cinza muros com grafites ou constrói irritantes ilhotas nos cruzamentos, bairros como a Vila Romana, onde moro, estão sendo completamente transfigurados pela voracidade imobiliária, com incessantes construções de prédios de apartamentos que em pouco tempo tornarão este simpático bairro num inferno sem sol, sem gente andando pelas ruas - só carros - de trânsito pesado sem escoamento possível, dificuldade para estacionar e medo da violência. Para impedir esse verdadeiro crime urbano bastaria que o bom senso regulasse o crescimento da cidade, estipulando regras de construção adequadas (determinando, por exemplo, a altura máxima dos edifícios) e porcentagens razoáveis de reocupação, em vez da proibição pura e simples.
Quanto aos grafiteiros e pichadores, no ano passado houve dois episódios envolvendo ações coletivas que merecem consideração. Um na escola de Belas Artes e outro na Bienal. Em ambos os casos a ação foi violenta, truculenta e oportunista, explorando o evento com o simples propósito de autopromoção mediante argumentos capengas, se justificando com pseudo-conceitos como "questionamento dos limites da arte" e "liberdade de expressão", supostamente pertinentes numa discussão e num espaço "de arte". E a suposta posição de "vítimas do sistema" caía no ridículo do jogo de cartas marcadas da ação, da esperada repressão e a consequente repercussão na mídia (e o pior é que a estúpida e absurda prisão de uma pichadora dava consistência a essa posição de vítima). Essas ações deturpavam o próprio sentido das pichações como intervenções urbanas.
Muito diferente é ver a lateral cega de um prédio novinho, branquinho, marcado com aquela curiosa tipografia das pichações. Vandalismo, sem dúvida, mas ali eu vejo também um caráter subversivo divertido, manifestação de uma cultura urbana adolescente genuína e espontânea. Algumas são verdadeiras proezas. Devem ser naturalmente proibidas, mas já ouvi que, para os pichadores, sem a adrenalina proporcionada pela proibição não teria graça. Mas no caso dos belos grafites nos muros da 23 de Maio - uma via expressa árida - francamente, ali me parece o lugar mais adequado possível para eles e não há razão para proibi-los.
Mas Kassab viu uma oportunidade de empreender sua cruzada cinzenta. Cruzada que também se manifesta nas obras das calçadas da Paulista, onde mais de cem árvores foram simplesmente retiradas! Será que é para não precisar varrer as folhas secas que "sujam" as calçadas? Falta massa cinzenta para esses amantes do cinza que tem em Kassab um fiel representante. Viva os grafites, viva os neons, viva Zapata!
*Rodrigo Andrade é artista plástico
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