quinta-feira, 16 de julho de 2009

Crítica: Verbo 2009 por Silas Martí

fonte: Folha de S. Paulo

Ficar pelado não é sinônimo de boa performance artística

Mostra traz recorte potente do gênero, mas perde com nudez em trabalhos fracos

Bruno Fernandes/Folha Imagem
Coreografia com saliva e roupa íntima dos bailarinos da companhia francesa Les Gens d'Uterpan, que participou da última Verbo

A nudez ofuscou o que havia de bom na última Verbo, festival de performances da galeria Vermelho encerrado no último domingo. Não que o corpo tenha perdido o apelo, ainda mais no frio do inverno paulistano. Mas o que se viu, a despeito de obras mais bem acabadas de gente vestida, foi um espetáculo pueril.
Logo no primeiro dia, o português Gabriel Arantes já tinha garotas pintadas de índio com os seios à mostra. Mais constrangedor e um tanto datado, Marco Paulo Rolla levou um rapaz e outra mulher para quebrar taças -todos nus- num dos ambientes da galeria.
Foi dura a espera. Além de desviar dos estilhaços de vidro, o público, que foi minguando ao longo da performance, não respondeu às taças quebradas. Numa espécie de clímax não planejado, um dos meninos cortou o dedo num caco de vidro e concluiu o trabalho manchando de sangue os restos transparentes -devia vibrar de emoção com o acaso sofrido.
Dias depois, o holandês Anno Dijkstra esperou a sala lotar para então tirar toda a roupa. Amarrou um aparato no peito que simulava um tiro de revólver. No lugar do sangue cenográfico, um líquido dourado. Na hora em que levaria o disparo fajuto, algo deu errado. Virou então de costas para a plateia, rearmou o disparador e manchou de ouro o piso da galeria.
Era sua reinterpretação da performance "Shoot", de Chris Burden, em que o artista norte-americano, em plena Guerra do Vietnã, levou um tiro de verdade no braço -estava vestido.

Tédio e êxtase
Nua, Ana Montenegro encarou por meia hora uma plateia entediada. Era essa a performance: uma mulher pelada. No mesmo dia, Rose Akras ficou só de calcinha e pintou o corpo todo de preto, num trabalho em que evocava o êxtase das santas esculpidas pelo barroco italiano Gian Lorenzo Bernini.
Os bailarinos da companhia francesa Les Gens d'Uterpan também tiveram seu momento à vontade. De cueca e calcinha, babaram uns sobre os outros em poses contorcionistas que armaram pela galeria.
É verdade que a nudez, nesse caso, estava de acordo com o objetivo. Mas cansou a repetição, a certeza quase absoluta de que performance, no imaginário de boa parte dos escolhidos para esta Verbo, ainda é sinônimo de ficar pelado e fazer alguma coisa, qualquer coisa.

Vertente sonora
Funcionou, por outro lado, a vertente sonora desta edição. Se babando o Les Gens d'Uterpan conseguiu um impacto médio, o olhar fixo que jogava sobre os visitantes valeu mais, adensado pelos graves potentes de caixas de som espalhadas pela galeria. O mesmo valeu para Maurício Ianês, que fez reverberar pelo espaço uma sinfonia orgânica distorcida.
Daniel Fagundes, que no ano passado tentou enfiar mais de dez pessoas peladas num Fusca, orquestrou um concerto de buzinas com vários carros estacionados no pátio da galeria. Perdeu o ritmo, mas ganhou com a fusão de sua algazarra aos rojões do Pacaembu vizinho em noite de clássico.

Riso e choro
Vestidos, os espanhóis da dupla Los Torreznos transformaram a língua em instrumento abstrato em duas performances irretocáveis. Gritando "la cultura" à exaustão e, no dia seguinte, "el dinero", protagonizaram o momento mais que saudável em que a arte desceu do pedestal e riu de si mesma.
Mais para o choro, a turca Nezaket Ekici se pendurou do teto de ponta-cabeça e leu notas de agressão contra mulheres. Vestia uma burca. Não é preciso dizer que, nesse contexto, foi mais transgressora do que as várias peladas que desfilaram pelas salas da Vermelho.
A Verbo fechou ao som de uma canção triste em fita cassete, que o colombiano Ícaro Zorbar fez tocar com um mecanismo instalado num ventilador. Rolava a música e a fita magnética se desenrolava no vento em desenhos no ar -promessa sólida de que restam novos rumos para a performance.

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