fonte DW
Em nome do marido, Eva Beuys zela para impedir a exposição de obras duvidosas. Como a vitrine com lixo recolhido por ele em 1973. Disputa bizarra, tratando-se de alguém que afirmava que "toda pessoa é um artista".
Não é fácil ser artista conceitual. Nem mesmo postumamente. Uma disputa em curso entre a viúva de Joseph Beuys (1921-1986) e um amigo do artista, René Block, ilustra bem os riscos dessa atividade no limiar entre as artes plásticas, a ação política e o exibicionismo pessoal.
No dia 1º de maio de 1972, Beuys realizou uma ação em Berlim intitulada Ausfegen (Varredura). Juntamente com dois estudantes, recolheu lixo das ruas do lado ocidental (capitalista) da metrópole alemã, usando uma vassoura vermelha (comunismo?). Considerando o material recolhido interessante demais para ir parar no lixo, ele o confiou a Block.
Durante 13 anos, o amigo preservou aquele cantinho em sua galeria, limpando-o periodicamente de lenços de papel, bilhetes de ônibus e outros dejetos acrescentados por visitantes distraídos. Tratava-se de preservar o lixo de Beuys em sua forma original.
Vitrine de sucesso
Aí veio a ideia da vitrine. Segundo o jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung (FAZ), em 1985, poucos meses antes da morte do artista natural de Krefeld, seu amigo decidira arranjar vassoura, poeira, garrafas de bebida, paralelepípedos etc. numa caixa branca de madeira com janela: uma vitrine como as que Beuys empregara tantas vezes.
Block assegura: "Combinei tudo com Beuys, a coisa ocorreu de acordo com sua vontade". E, mesmo não havendo qualquer registro escrito dessa vontade, iniciou-se ali uma carreira gloriosa. Ausfegen foi exposta na Kunsthalle de Hamburgo, no Hamburger Bahnhof de Berlim, na Tate Modern de Londres e, por fim, na mostra Arte de duas Alemanhas, do Los Angeles County Museum of Art.
Entra a viúva
Em abril de 2009, quando a vitrine se encontrava a caminho da exposição Arte e Guerra Fria, no Neues Museum de Nurembergue, entra em cena Eva, a viúva de Beuys.
Ela já tolerara demais que "Varredura" fosse exposta em nome do finado. "A obra não foi autorizada, nem paga", contabiliza. E acrescenta (note-se o emprego do presente do indicativo): "Meu marido não manda expor coisas que não fez de modo algum".
Eva Beuys acha a vitrine bonita, mas "uma obra de meu marido, nessa forma ela não é". Seja como for, a peça está fora de circulação até que os respectivos advogados consigam definir a distinção entre lixo puro e um Beuys legítimo.
A César o que é de César
A viúva propõe que, caso exposta, Ausfegen seja atribuída a René Block, o qual, afinal de contas, a produziu. Este rejeita a ideia – "Todo o mundo da arte ia rir, não dá, não" – e nem pensa em vender o objeto.
Justiça seja feita: durante uma disputa anterior, ainda em 1987, o amigo do artista afirmara não tratar-se de uma autêntica vitrine beuysiana, mas sim de um mero depósito de material. Na época, a peça foi avaliada em 300 mil marcos alemães (cerca de 150 mil euros).
Finanças à parte, a atual celeuma sobre autoria e propriedade talvez não soaria tão bizarra e mesquinha, se não se tratasse justamente do legado de alguém como Joseph Beuys, que pregava que "toda pessoa é um artista".
Na realidade, apesar de propagar uma doutrina tão liberal, a vida do misto de artista plástico, performer, ativista, xamã, clown e teórico confuso tampouco foi livre de contradições. Como demonstrou o "caso da banheira suja".
Banheira suja e canto de sebo
Em 1973, sua unbetitelt (Badewanne) [sem título (Banheira)]aguardava para ser exposta em Wuppertal, por empréstimo permanente de seu proprietário, um colecionador importante. Tratava-se de uma banheira de bebê, trabalhada com pedaços de esparadrapo e bandagens.
Paralelamente, realizava-se no local do depósito, o Museu de Leverkusen, uma festa do Partido Social Democrata (SPD). À procura de um recipiente para lavar copos de cerveja, duas deputadas depararam com a banheira "suja". Ignorantes de seu estatuto de obra de arte, elas fizeram o impensável: esfregaram-na até ficar brilhando, depois utilizando-a para seus fins pragmáticos.
Beuys foi o primeiro a não achar graça de tamanha insensibilidade artística. Seguiu-se um processo, ao fim do qual a cidade de Wuppertal, na qualidade de detentora do empréstimo, foi sentenciada a pagar 40 mil marcos ao proprietário. O artista recebeu a banheira – limpa – de volta, e refez a obra.
Treze anos mais tarde, a destruição – igualmente involuntária – de um dos numerosos Fettecke (Cantinho de sebo) de Beuys pelo zelador da Academia de Arte de Düsseldorf resultou em sentença semelhante.
Beuys e Da Vinci
No entanto, agora, mais do que nunca, seu acervo parece estar em mãos seguras. Eva Beuys tornou-se extremamente sensível para questões de propriedade intelectual, desde um prolongado – e, segundo o FAZ, "indigno" – debate com o Museu Moyland sobre se era lícito substituir uma barra de chocolate, numa instalação de Beuys, por uma imitação de papelão.
A herdeira não parece ter dúvidas sobre sua missão. Ao comentar a notoriedade de Ausfegen, ela passa por cima dos postulados do próprio marido sobre "obra" e "artista", e carrega nas tintas sem medo: "É como uma falsificação de Leonardo da Vinci que as pessoas amam mais do que o original".
Autor: Augusto Valente
Revisão: Rodrigo Abdelmalack
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