quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Hoje Francis Bacon faria 100 anos

Para o pintor Francis Bacon, homem é carne e carcaça em potencial; leia trecho


A representação da carne humana de forma nua e crua, em tons sanguíneos e funções orgânicas palpáveis diante do olhar do espectador. Foi assim que o irlandês Francis Bacon (1909-1992) destacou-se na pintura figurativa do século 20 com seus quadros. Hoje, comemora-se o centenário do nascimento do pintor.

Bacon pincelava temas polêmicos com uma inusitada visão modernista que possuía do mundo. Fantasias masoquistas, pedofilia, desmembramento e dissecação de corpos e tensão homoerótica eram comumente tratados por ele em suas obras. Essa liberdade autoral está relacionada, em parte, à repressão que sofreu quando criança. O pai era um homem violento e o agredia. A infância traumática do pintor transformou-se em arte transgressiva, permeada por fluídos naturais --sangue, bílis, urina e esperma-- e sexo e religião contrapondo-se em intensa velocidade de traços.



Em "Entrevistas com Francis Bacon", o crítico de arte inglês David Sylvester reuniu nove entrevistas que o pintor lhe concedeu entre os anos de 1962 e 1986. Os relatos são o testemunho do processo de criação e concepção do artista.
No trecho abaixo, extraído do volume, Sylvester trata do tema corporal e de como o pintor irlandês lida com a questão da carne humana. "Quando você entra num açougue e vê como as carnes podem ser bonitas e depois pensa nisso, é que percebe todo o horror da vida-- da coisa que come uma a outra", explica Bacon.

David Sylvester: Quando você pinta uma crucificação, você acha que aborda o problema de uma maneira muito diversa daquela que usa para abordar outras pinturas?

Francis Bacon: Bem, claro, você está então lidando realmente com seus sentimentos e emoções. Você poderia dizer que chega quase a ser um auto-retrato. Você está lidando com sentimentos muito particulares que têm a ver com o comportamento e com a vida como ela é.

D.S.: Uma configuração recorrente e muito pessoal em sua obra é o entrelaçamento da imagística da crucificação com a imagística do açougue. A conexão com a carne deve ter um significado muito forte para você.

F.B.: É verdade. Se você for a um desses grandes açougues e andar por aqueles salões enormes cheios de cadáveres, encontrará carne, peixe, aves e outras coisas mais ali deitadas, mortas. E, como pintor, você não pode deixar de perceber toda a beleza do colorido da carne.

D.S.: A conjunção da carne com a crucificação parece acontecer de duas maneiras: pela presença na cena de flancos de carne e pela transformação da própria figura do crucificado numa carcaça pendurada.

F.B.: Bem, claro, nós somos carne, somos carcaça em potencial. Sempre que entro num açougue penso que é surpreendente eu não estar ali no lugar do animal. Mas usar a carne dessa maneira particular talvez seja igual à maneira como alguém usaria a coluna, porque estamos sempre vendo imagens do corpo humano através de chapas de radiografia e isso obviamente modifica o modo como se pode usar o corpo. Você deve conhecer o belo pastel de Degas na National Gallery, de uma mulher lavando suas costas. E você pode ver bem lá no alto da coluna que o osso quase sai para fora do corpo. Isso dá uma tal força e imprime uma tal distorção que você passa a perceber a vulnerabilidade do resto do corpo, mais do que se Degas tivesse desenhado a coluna subindo naturalmente até o pescoço. Ele quebra a coisa para que ela pareça saltar da pele. Não importa se Degas fez isso de propósito ou não, é este detalhe que torna o quadro ainda mais admirável, pois você de repente passa a perceber tanto a carcaça quanto a carne, que em geral ele simplesmente pintava cobrindo os ossos. No meu caso, não resta dúvida de que essas coisas são influenciadas por chapas de radiografia.

D.S.: É evidente que sua obsessão por pinturas em que aparecem carnes se deve bastante a questões ligadas à forma e à cor... suas próprias obras evidenciam isso. Mas sem dúvida os quadros que têm o tema da crucificação pertencem àquela categoria que levou os críticos a ressaltar o que chamaram de elemento de horror na sua obra.

F.B.: Bem, não há dúvida de que eles sempre ressaltaram esse lado do horror. Mas eu não sinto muito isso em minha obra. Nunca procurei o horror. Basta que se observem as coisas e se saiba ler nas entrelinhas para concluir-se que as coisas que eu fiz não enfatizam este lado da vida. Quando você entra num açougue e vê como as carnes podem ser bonitas e depois pensa nisso, é que percebe todo o horror da vida - da coisa que come uma a outra. É como todas essas idiotices que se dizem das touradas. As pessoas comem carne e depois se queixam da existência de touradas; elas recriminam as touradas, mas estão lá cobertas de peles e com enfeites de pena no cabelo.

"Entrevistas com Francis Bacon"

Autor: David Sylvester

Editora: Cosac Naify

Páginas: 208

Quanto: R$ 62


da Folha Online em 28/10/09

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