sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

ARTIGO PRÉ BIENAL

Experimentando Carvalho

por Camila Molina do Estado

Neste ano, você vai ouvir falar muito dele, o rei das experiências

Em 1931, o artista Flávio de Carvalho (1899-1973) realizou a Experiência nº 2 em São Paulo: de boné, andou em sentido contrário ao cortejo de uma procissão de Corpus Christi. Esta ação quase o levou a ser agredido pelas pessoas, que o consideraram um desrespeitador dos costumes religiosos. Interessado no estudo da antropologia e da psicanálise, ele teve de ser protegido pela polícia. Hoje, certamente, esse ato "pode parecer quase uma bobagem, uma provocação que não teria mais impacto", como diz Moacir dos Anjos, coordenador geral da 29ª Bienal de São Paulo, cuja mostra, este ano, em setembro, terá justamente Flávio de Carvalho e aquela experiência contraconvencional como uma das âncoras principais para tratar do tema Arte e Política. Será o ano de Carvalho.

Juntando a participação de destaque do artista na próxima Bienal e ainda a retrospectiva que o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) vai dedicar a esse criador entre 15 de abril e 13 de junho, 2010 já se configura mesmo como o ano do resgate de Flávio de Carvalho, oportunidade mais do que especial para se pensar a contribuição plural desse artista - pintor, desenhista, arquiteto, cenógrafo, decorador, escritor, teatrólogo, engenheiro, vanguardista -, que atuou num contexto de passagem do moderno para o contemporâneo. Soma-se, ainda, o lançamento, em 2010, do livro Dialética da Moda, que a editora Cosac Naify prepara como coletânea de artigos que Carvalho publicou em 1956 no extinto Diário de São Paulo - naquele mesmo ano, ele realizou a Experiência nº 3, passeando pelo Viaduto do Chá com seu New Look, traje formado por saiote com pregas, blusa com mangas folgadas, meia arrastão e sandália de couro. E tem mais: a mostra La Deriva És Nuestra, que ocorrerá a partir de 4 de maio no Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia, na Espanha - coletiva com curadoria de Lisette Lagnado que tem Flávio de Carvalho como ponto de partida, principalmente sua relação com arquitetura e urbanidade.

Pode até ter sido uma coincidência a junção de todas essas iniciativas em torno do artista, mas é curiosa a movimentação ao redor de um único criador. "Este é um momento de quebra de certezas e a obra de Flávio de Carvalho surge naturalmente por ele ser um artista nessa linha, contemporâneo porque faz questionar o nosso próprio tempo", diz Moacir dos Anjos. "É importante criar essa repercussão, repensar a história da arte no País, que exclui certos artistas, pouco afeitos a definições, porque perturbam sua narrativa", afirma ainda o coordenador da 29ª Bienal. "A obra de Flávio de Carvalho é de difícil interpretação e ele entra na reflexão sobre o que é moderno e contemporâneo, algo que tem ligação com o timing do MAM", diz Felipe Chaimovich, curador do museu, que convidou Rui Moreira Leite para conceber a retrospectiva. "Esse rumor em torno dele é para mim surpreendente", afirma Lisette Lagnado, que está há dois anos preparando a exposição para o Reina Sofia.

Flávio de Carvalho é um artista que criou em várias frentes. Formado em Engenharia, estudou em Paris e na Inglaterra entre 1911 e 1922, voltando a São Paulo pouco tempo depois da realização da Semana de Arte Moderna de 22. Seus primeiros projetos modernos foram dedicados à arquitetura, entretanto, não foram concretizados, como o que participou, em 1927, do concurso Palácio do Governo do Estado de São Paulo. Já naquela época era tido e havido como o "revolucionário romântico", definiu o arquiteto franco-suíço Le Corbusier (1887-1965).

"Ele, em qualquer momento, estava na onda sem estar nela propriamente", diz Rui Moreira Leite, autor do livro Flávio de Carvalho - O Artista Total (Editora Senac) e curador da retrospectiva no MAM. Entre tantas atividades, travou contato com os surrealistas europeus; fundou, em 1932, o Clube dos Artistas Modernos (CAM), com Antonio Gomide, Di Cavalcanti e Carlos Prado; faz performances como a Experiência nº 2; pinturas de raiz expressionista (a exposição de 1948, no Masp, lhe dá a visibilidade ampla); cenário e figurinos para A Cangaceira, um dos espetáculos do Ballet do 4º Centenário de São Paulo; escreve e lança livros; realiza a Experiência nº 4, de cunho antropológico, na Amazônia, com quase 60 anos.

Sendo assim, a retrospectiva no MAM não vai se centrar no Flávio de Carvalho artista plástico, porque seria muito pouco. O mote, segundo o curador, será os vínculos que o criador estabeleceu em sua trajetória, culminando numa produção tão plural. "Vamos acompanhar a cabeça do Flávio, mas a dificuldade é que não se pode exagerar na quantidade de informação", diz Moreira Leite. "Flávio sempre passou uma ideia de ser maluco, mas era tudo muito claro para ele." A retrospectiva, com documentos, livros, ampliações fotográficas, projetos e obras originais (do museu e de outras instituições e de colecionadores particulares) ocupará a Grande Sala do MAM.

Por outro lado, ao mesmo tempo, na Sala Paulo Figueiredo do museu, se dará uma relação de Flávio de Carvalho com a contemporaneidade, por meio da mostra A Cidade do Homem Nu, com curadoria do colombiano Inti Guerrero. Nela a obra do artista estará em diálogo com imagens do cantor Ney Matogrosso e de criadores nacionais e internacionais como Claudia Andujar, Cristina Lucas, Miguel Angel Rojas e Daria Martin.

Já na 29ª Bienal de São Paulo o desafio, por enquanto, será o de apresentar a Experiência nº 2 (da qual não se há nenhum registro físico), na vertente da relação entre arte e política. "Como descrever a ação sem falar do contexto de uma São Paulo conservadora, religiosa? Pensamos em criar ambiente que revele a potência desse trabalho", diz Moacir dos Anjos. A mostra ainda está em fase de plena pesquisa, mas não interessa ao projeto da 29ª Bienal ter "uma sala especial Flávio de Carvalho", como adianta o curador. "Nosso interesse principal é atualizar a exposição de Flávio de Carvalho." Moacir dos Anjos também frisa que não se trata de um redescobrimento do artista no Brasil e que a escolha dele como um destaque de "potência para a arte contemporânea" pode render outros frutos. "Ele é relativamente pouco conhecido internacionalmente e esta é uma proposição da Bienal para fora", diz o curador.

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