da Folha Online"Histórias Reais" Autora: Sophie Calle
Editora: Agir
ISBN: 8522008787
Páginas: 88
Quanto: R$ 34,90
A mesa 12, que ocorrerá no próximo sábado (4), às 11h45, reserva um algo a mais para o público da Flip-2009 (Festa Literária Internacional de Paraty). Sob o tema "Quatro Paredes", o primeiro encontro público entre a artista plástica francesa Sophie Calle, 55, e o escritor francês Grégoire Bouillier, 49, diluirá ainda mais as fronteiras entre realidade e ficção, presentes na obra de ambos.
Bouillier, antigo companheiro da artista, rompeu o relacionamento por e-mail, terminando o texto com a frase "Cuide de você". Calle então pediu a 107 mulheres das mais diferentes profissões que lessem e interpretassem sua reação diante daquela resposta. Esse conjunto de expressões femininas foi filmado por Calle, tornou-se uma obra de sucesso ("Prenez Soin de Vous", a famosa frase, em francês), e representou a França na Bienal de Veneza, em 2007. O livro que leva o mesmo nome é um dos assuntos que será abordado pela escritora na Flip. No próximo mês, ela vem a São Paulo para inaugurar a exposição, no SESC Pompéia.
Outra surpresa que Calle traz ao país é a publicação de "Histórias Reais" (Agir, 2009), sua primeira obra a ser lançada por aqui. O livro relata as experiências autobiográficas da escritora. Das aventuras pessoais --infância, cotidiano e relacionamentos-- à experiência sensorial de seus traços, desta vez no texto e não na tela, ela revela-se por vezes uma menina que segue os conselhos do pai e vai ao médico, uma moça que compartilha suas intimidades com desconhecidos, e uma mulher que convive com os entrementes da relação com "Greg" (Grégoire Bouillier). O que seria verdade ou invenção? O mistério fica sob a responsabilidade do leitor.
Trechos extraídos do livro "Histórias Reais" :
Os seios milagrososQuando eu era adolescente, praticamente não tinha seios. Para imitar minhas amigas, comprei um sutiã que, evidentemente, não me servia para nada. Minha mãe, que exibia com orgulho um busto esplendoroso, e que nunca perdia uma oportunidade de fazer uma gozação, apelidara-o de porta-nada. Ainda posso ouvi-la. Durante os anos que se seguiram, lentamente, meu peito foi aumentando. Mas nada muito excitante. E de repente, em 1992 - a transformação se deu em seis meses -, ele começou a crescer. Sozinho, sem tratamento nem intervenção exterior, milagrosamente. Juro. Triunfante, mas na verdade sem muita surpresa, atribui a performance a vinte anos de frustração, de inveja, de devaneios, de suspiros.
O narizEu tinha quatorze anos e meus avós queriam mandar corrigir algumas das minhas imperfeições. Iriam refazer meu nariz, disfarçar a cicatriz da minha perna esquerda com um pedaço de pele retirada das nádegas, e ainda corrigir as orelhas de abano. Eu não estava convencida, mas me tranqüilizaram: até o último instante eu poderia desistir. Uma consulta foi marcada com o doutor F., famoso cirurgião plástico. Foi ele que acabou com as minhas dúvidas. Dois dias antes da operação, ele se suicidou.
O porcoÉ uma história meio louca. Eu tinha trinta anos. Um homem me procurou dizendo que tínhamos projetos similares. Concordei em marcar um encontro com ele, sempre tenho medo de perder alguma coisa. Sua arte consistia em pedir a desconhecidas que dormissem com ele. Eu mesma já não havia pedido a estranhos que deitassem na minha cama para serem fotografados? Ele combinou de me levar a um churrasco em Neuilly. Durante a noite inteira, banquei a empregada. Grelhei salsichas, servi, limpei. Ocupada, o tempo passava mais depressa. Tarde da noite, ele me deixou na porta de casa, curvou-se, procurou meus lábios. Empurrei-o, dizendo: "Quem disse que quero beijá-lo?" Ele respondeu: "Não faz mal, você come como um porco!" Vários anos se passaram, mas essa frase continua me atormentando. Não lembro mais nada desse indivíduo, mas ele continua sentado à minha mesa.
O strip-teaseEu tinha seis anos e morava na rua Rosa-Bonheur, com meus avós. Todos os dias, quando voltava para casa, ia tirando a roupa no elevador e chegava nua ao sexto andar. Em seguida, atravessava depressa o corredor e, assim que entrava no apartamento, ia me deitar. Vinte anos depois, era numa barraca de um parque de diversões, em Pigalle, que eu me despia todas as noites, usando uma peruca loura, caso meus avós, que moravam no bairro, viessem a passar por ali.
A carta de amorSobre a mesa, está jogada displicentemente, há anos, uma carta de amor. Eu nunca havia recebido uma carta de amor. Encomendei uma a um escritor público. Oito dias depois, recebi uma linda carta de sete páginas, escrita à mão, em versos. Havia custado cem francos, e o homem dizia: "... sem fazer um só gesto, segui você por toda parte...".
O dadoSempre gostei que decidissem por mim. Com B. tínhamos uma regra: nos dias pares ele decidia, nos dias ímpares era eu. Quando ele foi para a América, deu-me um dado de presente para substitui-lo.
O dado (continuação)Um dia, num vernissage, um jovem aproximou-se de mim e se apresentou. Tinha o mesmo sobrenome de B. Manifestei minha surpresa diante da semelhança até entre a ortografia, pouco comum, de seu sobrenome e do sobrenome do meu amante. Sua resposta foi galante: dois homens com o mesmo sobrenome me amavam. No dia seguinte, convidou-me para compartilhar sua cama. Confiei minha decisão ao dado. Por intermédio de seu presente, B. aprovava seu sucessor.
O mau hálitoEu tinha trinta anos e meu pai achava que eu tinha mau hálito. Sem falar nada comigo, ele marcou uma consulta com um clínico qualquer. Fui. Assim que cheguei, pelo jeito dele, compreendi logo que se tratava de um psicanalista. Sabendo da implicância que meu pai sempre manifestara para com essa profissão, expliquei a ele a situação: "Houve um engano. Meu pai acha que tenho mau hálito, mas ele me mandou a um clínico geral". O psicanalista retrucou: "Você sempre faz o que seu pai manda?" Tornei-me sua paciente.
O divórcioNas minhas fantasias, eu sou o homem. Greg logo percebeu. Talvez tenha sido por isso que um dia ele me propôs que eu o fizesse urinar. Isso se tornou um ritual entre nós: eu ficava atrás dele, desabotoava-lhe as calças sem ver, tirava o pênis, fazia um esforço para colocá-lo na posição adequada e visar bem. Depois, recolocava-o lentamente no lugar e fechava a braguilha. Pouco depois da nossa separação, sugeri a Greg que tirássemos uma foto como lembrança desse ritual. Ele aceitou. Então, num estúdio do Brooklyn, diante da câmera, fiz com ele urinasse em um balde de plástico. Essa foto serviu de pretexto para que eu pusesse a mão no seu sexo, pela última vez. Naquela noite, aceitei o divórcio.
O outroAquele homem me agradava, mas na nossa primeira noite de amor tive medo de olhar para ele. Eu achava que ainda amava Greg, e temia ser dominada pelo pensamento de que aquele não era o homem que deveria estar ali, na minha cama. Preferi fechar os olhos. A incerteza persistia na escuridão. Um dia, fiz a bobagem de dizer a ele porque eu mantinha as pálpebras fechadas na cama. Ele não deixou transparecer seus pensamentos. Alguns meses depois, finalmente livre do fantasma de Greg, abri os olhos, certa de que a partir daquele momento era aquele outro que eu queria ver. Eu não sabia que seria nossa última noite: ele ia me deixar.
"Aquilo que acontece possui uma tal antecipação que nunca podemos ir ao seu encontro e conhecer sua verdadeira aparência".